Hehaka Sapa – O Cachimbo Sagrado – NOTAS
[1] Squaw: tratamento ofensivo dado aos índios norte-americanos pelos homens brancos
[2] “Fala-se geralmente da religião dos índios como sendo um culto da Natureza e dos animais. Este termo é demasiado amplo e confuso. Uma investigação paciente e uma observação cuidados nos ensinam, ao contrário, que o índio não adora os objetos que invoca ou menciona em seus ritos. A terra, os quatro ventos, o sol, a lua e as estrelas, as pedras, a água, os diversos animais, todos são representantes de uma vida e de um poder misterioso…” (Alice C. Fletcher, The Elk Mistery Festival). “Uma coisa não é apenas o que é para os sentidos, mas também aquilo que ela representa. Os objetos, naturais ou artificiais, não são para o primitivo, como podem sê-lo para nós, “símbolos” arbitrários de uma dada realidade distinta e superior; são para ele a manifestação efetiva desta realaidade: a águia ou o leão, por exemplo, não são tanto um símbolo ou uma imagem do Sol, mas são de fato o Sol sob um de seus aspectos (porque a forma essencial é mais importante do que a espécie em que ela se manifesta); do mesmo modo, toda casa é o mundo em efígie e todo altar está situado no centro da terra; se este modo de considerar as coisas parece “inconcebível”, é apenas porque “nós” estamos mais interessados no que as coisas são do que naquilo que elas significam, mais interessados nos fatos do que nas idéias universais. Quando se diz que um grupo humano descende de um tótem, não existe nisto, como crêem os antropólogos, um absurdo puro e simples; o que está expresso aí é que o grupo descende do Sol, o Progenitor e Prajapati de todos os seres, na forma particular com a qual, numa visão ou em sonhos, este se revelou ao antepassado fundador do clã. O mesmo raciocínio justifica a comida eucarística: o Pai-Progenitor é sacrificado e dividido por seus descendentes nas espécies da carne do animal sagrado: “Este é meu corpo, tomai e comei”. Deste modo, como disse Lévy-Bruhl a respeito dos símbolos deste gênero, “frequentemente estes não tem por função “representar” aos olhos seu objeto, mas permitir participar dele”, e que “se sua função essencial consiste em “representar”, no pleno sentido desta palavra, a seres ou objetos invisíveis, em tornar efetiva sua presença, resulta daí que não consistem necessariamente em reproduçãoes ou imagens destes seres e destes objetos”. O objetivo da arte primitiva é inteiramente distinto das intenções estéticas ou decorativas do “artista” moderno (para quem os antigos sobrevivem apenas como “formas de arte” desprovidas de significado) e este objetivo explica seu caráter abstrato.” (Ananda K. Coomaraswamy, Figures of Speech or Figures of Though).
[3] “O fogo de seu conselho ou de sua grande tenda-de-medicina é, como às vezes indicam suas canções, o mais antigo de tudo; vem a ser o que os filósofos gregos da escola de Pitágoras chamavam a Hestia que arde no centro do mundo. Misturando seu hálito com o fogo do tabaco sagrado, toma parte deste fogo central, e é este mesmo fogo que se eleva com sua fumaça até o zênite do Universo ou desce até o nadir tocando a terra, ou que se une aos quatro ventos que percorrem os lados de nosso habitáculo humano cheios da vida sussurrante dos altos céus” (Hartley Burt Alexander, L’Art et la Philosophie des Indiens de l’Amérique du Nord).
[4] Segundo a mitologia iroquês, “Hino, o Espírito do trovão, é o guardião do Céu. Armado com um potente arco e com flechas de fogo (de raios), destrói todas as coisas nocivas. Sua esposa é o arco-íris (…) Oshadagea, a “Grande Águia do Orvalho”, está também a serviço de Hino. Habita no Céu do Oeste é leva um lago de orvalho entre suas espáduas. Quando os espíritos maléficos do fogo destróem sobre a terra toda espécie de verdor, Oshadagea alça vôo e, de suas asas abertas a umidade benéfica vai caindo gota a gota” (Max Fauconnet, Mythologie des deux Amériques). A associação do relâmpago com o “Pássaro do Trovão” é tanto mais notável na medida em que nas tradições mais diversas o relâmpago é assimilado à Revelação, como a chuva o é com a Graça. A águia pertence ao mesmo simbolismo universal do raio, donde a associação deste animal com São João, autor inspirado do Apocalipse e “filho do Trovão” (Boanerges).
[5] Convém mencionar, a respeito, o fato de que, no mundo dos pele-vermelha, as Montanhas Rochosas – os penhascos – encontram-se a Oeste, e que delas nascem numerosos rios que fertilizam as planícies. “Quando uma visão vem da parte dos Seres do Trovão do Oeste, vem com terror e como um furacão; mas quando o furacão da visão passa, o mundo está mais verdse e mais feliz; pois cada vez que vem a este mundo a verdae revelada (the truth of vision), esta é como a c huva. O mundo fica mais feliz após o Terror do furacão” (Black Elk Speaks). A ascese responde à mesma conexão cósmica entre o “terror” e a “Graça”: “fazer medicina” é praticar, durante um período especialmente consagrado, o jejum, a ação de graças, a oração, a abnegação e mesmo a tortura voluntária (…) O objetivo é subjugar inteiramente as paixões da carne e aperfeiçoar o “si” espiritual. A abstinência corporal e a concentração mental em pensamentos elevados purifica o corpo e a alma (…) Então o espírito individual se torna mais conforme ao Espírito da Grande Medicina que está sobre nós” (Woodon Leg – índio cheyenne – em seu livro A Warrior who fought Custer).
[6] “Lembremos que, em diversas tradições, a imagem do Sol está também vinculada à da árvore, pois está representado nela como o fruto da Árvore do Mundo; ele abandona sua árvore no princípio de um ciclo e vem pousar nela ao final, de modo que a árvore é efetivamente uma “estação do Sol”. (René Guénon, L’Arbre du Monde)
[7] O “Grande Espírito” é de fato o “Pai” ou o “Avô”; a “Terra” é a “Mãe que engendra todos os seres, a “única Mãe”. Os índios pawnies designam a Deus com o nome de “Pai” (Tirawa) e o distinguem do Espírito manifestado (Kawaharu); na mesma ordem de idéias – a assimilação simbólica do céu a Deus enquanto princípio paterno – os índios pés-pretos chamam o Grande Espírito de “Poder solar” (Natosiwa), mas sem jamais identificá-lo ao sol visível.
[8] Este adjetivo não é um pleonasmo, pois a presença “natural” de Deus não é outra coisa que a Existência e suas diversas expressões ou formas, tais como, precisamente, os símbolos da Natureza, o Sol, a Lua, o Bisonte e outros que, para o índio, são wakan, sagrados. Citemos aqui a explicação, de um profundo simbolismo, dada por um chefe índio à etnóloga Alice Fletcher: “Tudo o que se move detém-se num lugar para fazer ali seu ninho, em outro para descansar de seu vôo. Um homem que caminha detém-se quando quer. É assim que a Divindade deteve-se. O sol, tão radiante e tão belo, é um dos lugares em que Ela se deteve. Ela esteve com a lua, com as estrelas e os ventos. As árvores, os animais, todos estão aonde Ela se deteve, e o índio pensa nestes lugares e envia a eles suas orações para alcançar o lugar em que Divindade se deteve, e então receberá ajuda e bençãos”.
[9] Os “moinhos de oração” budistas pertencem a um simbolismo inversamente análogo ao do Calumet; enquanto que neste a Realidade divina se atualiza nas direções do espaço para as quais se dirigem, a partir do centro que é o estado de individuação, as aspirações espirituais do indivíduo, o “moinho de oração” encarnará a Realidade divina na forma da Palavra revelada, fixada no espaço pelas letras sagradas que a transcrevem, e abençoando, mediante sua rotação, o Universo em sua manifestação espacial. Segundo um Upanishad, “Brahma está no Norte, está no Sul, no Leste, no Oeste, no Zênite e no Nadir”. O Corão diz, no mesmo sentido: “Para onde voltares o olhar, ali encontrareis o rosto de Allah”.
[10] Lembramos que o círculo tem também um significado dinâmico em relação com a cruz considerada segundo seu simbolismo estático; não falamos do quadrado, forma estática por excelência, pois este não intervém na perspectiva nômade de que se trata aqui. De fato, se a cruz representa, não uma tendência centrífuga, mas os pontos cardeais, o círculo por sua vez não indicará uma tendência concêntrica, mas o movimento circular dos “Quatro Ventos” ao redor do mundo, ou seja a “passagem da potência ao ato” dos quatro Princípios cósmicos; a mesma imagem está representada na swastika, na qual a cruz simples é evidentemente estática, enquanto seus braços são dinâmicos e “circulares”.
[11] Esta perspectiva explica as grandes “revoluções nômades” que, partindo das estepes mongóis com ímpeto inaudito, projetavam varrer as cidades, lugares de corrupção e “petrificação”, da superfície da Terra; acrescerntemos que o anel de Gengis Khan levava a swastika, que aparece também com frequência na arte dos pele-vermelha. Quanto à atitude dos pele-vermelha frente à Natureza de um lado e às cidades do outro, Tácito assinala características análogas nos povos germânicos: “Consideram que o fato de encerrar entre muros e representar com aspecto humano aos deuses seria desagradar à sua magestade: eles lhes consagram bosques e selvas, e invocam, com os nomes de divindades, ao Mistério que não v~eem senão através do temor reverencial (…) É sabido que os germânicos não têm cidades e que nem sequer suportam que suas moradias toquem umas nas outras”. Marcelino, autor do século IV, refere que os germânicos contemplavam as cidades romanas com horror, como se fossem prisões ou sepulcros, e as abandonavam logo após tê-las tomado.
[12] Como disse um “guardião do Calumet” a Epes Brown, Deus mostra uma bondade mantendo a natureza intacta: “Mesmo que tenhamos sido aplastrados de todas as maneiras possíveis pelo homem branco, ainda nos resta muito por quê dar graças ao Grande Espírito, pois, mesmo neste período de obscurecimento, sua obra na natureza permanece intacta e nos recorda continuamente Sua Presença divina”.
[13] Cabe perguntar o que foi mais ignóbil, se os métodos desleais empregados durante o avanço para o Oeste, ou o tratamento inflingido aos índios depois de sua derrota: “A tentativa de suprimir a autoridade dos chefes e a ordem social indígena começou com um agente (do governo) que veio a Pine Ridge em 1879 (…) Segundo sua convicção sincera, o índio não poderia adaptar-se à sua nova situação senão aceitando criar gado e estabelecendo-se em terrenos destinados ao cultivo. Sem embargo, como todos os homens de sua época, o agente estimava também que isto deveria ser acompanhado do abandono completo dos costumes índios. Assim, quando os índios pareciam empenhar-se com demasiada tenacidade em seus costumes de acampar em grupos e de celebrar conselhos entre si, ou quando não se mostravam bastante solícitos em colaborar, retinha suas rações ou usava a polícia para impor a mudança à força (…) O soterramento da sociedade indígena e da autoridade dos chefes foi seguida mais tarde por regulamentos oficiais que proibiam as danças e os rituais, em uma palavra, os costumes pagãos (…) De fato, as crianças eram raptadas à força e enviadas às escolas do governo; seu cabelo era cortado, suas vestes índias trocadas; eram proibidos de falar sua própria língua (…) Os que persistiam em seu antigo modo de vida e os que fugiam e eram capturados ganhavam o cárcere. Na medida do possível, as crianças eram retidas na escola ano após ano para serem subtraídas à influ~encia das suas famílias” (Gordon McGregor, Warriors without Weapons).
[14] “Caim, que matou a seu irmão Abel, o pastor, e construiu u ma cidade, prefigura a civilização moderna – civilização que foi descrita como uma “máquina mortífera desprovida de consciência e de ideal” (G. la Piana) , “nem humana, nem normal, nem cristã” (Eric Gill), e de fato, “uma anomalia, para não dizer uma monstruosidade” (René Guénon). Já se disse: “Os valores da vida declinam lentamente; o que fica é a aparência de uma civilização sem nenhuma das suas realidades” (ª N. Whitehead). Críticas parecidas existem às centenas. “A civilização moderna, por seu divórcio de todo e qualquer princípio, é comparável a um cadáver sem cabeça cujos últimos movimentos são convulsivos e insignificantes; não é, aliás, de suicídio, mas de assassinato que estamos falando” (Ananda K. Coomaraswamy, Am I my Brother’s Keeper?). “Nós os chamamos selvagens porque seus costumes diferem dos nossos, que consideramos como perfeição a urbanidade; eles pensam o mesmos dos seus… Por terem poucas necessidades dispõem de muito tempo livre para cultivar a alma mediante a conversação. Ele estima o nosso gênero laborioso de vida como serrvil e baixo, comparado com o seu; e a instrução segundo a qual nós nos valorizamos, eles a consideram frívola e vã” (Benjamin Franklin, Remarks concerning the Savages of North America)
[15] Os lakota são sioux do ramo teton; Alce negro pertencia ao grupo oglala deste ramo. Os outros três ramos dos sioux propriamente ditos são os dakota do oeste, os santi e os yankton (nakotas). A família linguística dos sioux compreende muitas outras tribos, principalmente os crow, hidatsa e mandan,
[16] Alce negro nos explicou que isto não deve ser interpretado simplesmente como um acontecimento temporal, mas também como uma verdade eterna: “Todo homem – disse-nos – que está apegado aos sentidos e às coisas do mundo e que, por isso, vive na ignorância, é devorado por serpentes, suas próprias paixões”.
[17] A tenda cerimonial dos sioux é construída com vinte e oito traves; uma delas é a “chave” que sustenta todas as demais e, segundo os sábios, representa o Grande Espírito que sustenta o Universo, que é representado pelo conjunto da tenda.
[18] A circumabulação segundo o movimento do sol é de uso corrente entre os sioux; sem embargo, o movimento inverso é igualmente utilizado em certas ocasiões, para danças e ritos que se seguem ou que precedem uma catástrofe: este movimento, com efeito, é o dos Seres do Trovão que sempre atuam de modo contnrário às leis gerais da natureza, já que chegam de uma maneira terrível e muitas vezes trazem a destruição. A razão da marcha “solar” é explicada por Alce Negro nestes termos: “Não é o Sul a fonte da vida? E o ramo florido, não vem verdadeiramente dali? E o homem, não vem dali, avançando até o poente de sua vida? Não vem depois o frio do Norte, aonde estão os cabelos brancos? E logo, não chega, se ainda vive, a fontne de luz e de conhecimento que é oLeste? Não regressa, por último, ao lugar de onde veio, que é sua segunda infância, a fim de devolver sua vida a tudo o que é vivo, e sua carne à Terra de onde ela veio? Quanto mais penseis nisto, mais significados achareis.” (Black Elk Speaks)
[19] Chifre Ôco Em Pé, como chefe da tribo, devia estar sentado no Oeste, o lugar de honra; dali se observa a porta, que está no Leste, de onde vem a luz, que simboliza a sabedoria; um chefe deve possuir sempre esta iluminação para poder guiar sua tribo de uma maneira wakan, “sagrada”, “conforme o mistério”.
[20] Wakan-Tanka como “Avô” é o Grande Espírito na medida em que é independente da criação; ele é não-qualificado e não-determinado, no sentido da “Divindade” (Godhead) da doutrina cristã, o do Brahma-Nirguna hindu. Wakan-Tanka como “Pai” é o Grande-Espírito considerado em relação com a sua maniferstação, seja como Criador, como Conservador ou como Destruidor; ele é então o “Deus” (God) cristão ou o Brahma-Saguna hindu.
[21] Também Maka, a Terra divide-se entre “Avó” e “Mãe”; esta é a Terra considerada como produtora de todas as coisas que crescem, portanto das coisas em ato, enquanto que a “Avó” é a substância de todas estas coisas, ou seja sua potencialidade. É a mesma distinção, no fundo, que os escolásticos estabelecem entre natura naturata e natura naturans.
[22] O bisonnte era para os índios o mais importante dos quadrúpedes, pois porporcionava-lhes alimento, roupas e mesmo suas casas, que eram feitas de peles curtidas. Como o bisonte continha em si todas estas coisas – e também por muitas outras razões – era um símbolo natural do Universo, ou seja da totalidade das formas manifestadas. Todas as coisas acham-se simbolicamente contidas neste animal: a terra e tudo o que cresce nela, todos o s animais e invclusive os “povos bípedes”; cada parte do bisonte representa, para o índio, uma das categorias da criação. Do mesmo modo, suas patas representam as quatro idades, que são uma condição da criação.
[23] A Águia Pintada voa mais alto do que todas as demais criaturas, e porisso é considerada como a função reveladora de Wakan-Tanka. É uma ave solar, sua plumas são parecidas com os raios do sol; quando um índio leva uma destas plumas – não importa como, às vezes apenas na mão – ela representa, ou melhor, “é” a “Presença Real”. O índio que porta o cocar de penas de águia “converte-se” em águia, ou seja, identifica-se em princípio – ou virtualmente – com o resplendor de Wakan-Tanka. A Águia Pintada corresponde àquilo que a doutrina hindu chama de Buddhi, ou o Intelecto, princípio informal e transcendente de toda a manifestação; Buddhi é muitas vezes definido como o raio que emana diretamente de Atma, o Sol espiritual. Tudo isso permitirá compreender o que significa o canto – tantas vezes mal interpretado – da “Dança dos Espíritos”: “A Águia Pintada vem para levar-me ao leão” (Wambali Galeshka wanyan nihi youwe).
[24] O “caminho vermelho” é o eixo que une o Norte e o Sul; é a via boa e reta, pois para os índios o Norte é a Pureza e o Sul é a Vida. Este “caminho vermelho” é assim similar à “via reta e estreita” do Cristianismo; é a linha vertical da cruz, ou também o çirat-el-mustaqin corânico. Por outro lado, existe, na cosmologia sioux, o caminho azul ou negro que liga o Leste ao Oeste, e que é a via do erro e da destruição; “Quem viaja por este caminho – diz Alce Negro – está desorientado, dominado pelos sentidos, e vive mais para si do que para o seu povo”. O “povo” aqui deve ser entendido no sentido do “próximo”, como nos Evangelhos.
[25] Quando o índio mata, na caça ou na guerra, deve realizar rituais de reconciliação, de purificação ou de dor, a fim de restabelecer o equilíbrio.
[26] Os sete círculos estão dispostos circularmente por ordem de tamanho, de modo que o menor acha-se colocado ao lado do maior.
[27] Segundo Alce negro, dois destes ritos já eram conhecidos dos sioux antes da chegada da Mulher celeste: os ritos purificadores da cabana de suar e os ritos encantatórios para receber uma visão; o ritual do Calumet foi acrescentados a estas duas técnicas espirituais.
[28] Traduzimos a palavra sioux wanaghi como “alma” e não como “espírito”, como preferem alguns etnólogos; o primeiro termo, entendido em seu sentido cristão e escolástico, é mais exato, pois o que é guardado e purificado neste rito é a totalidade dos elementos psíquicos do ser; estes elementos, embora estejam localizados em uma forma material – normalmente no redemoinho do cabelo – são na realidade de natureza sutil ou anímica, e intermediária entre o corpo material e o puro Espírito. Não devemos esquecer, por outro lado, que é o Espírito puro – a presença de Wakan-Tanka – que está no “centro” dos elemetnos sutis e materiais. A alma é assim retida, do modo como será descrito, num prolongamento do estado individual, a fim de que a parte sutil ou psíquica seja purificada e possa consumar-se uma libertação virtual. Isto é muito parecido com o estado que a doutrina católica chama de Purgatório.
[29] “É bom – diz Alce negro – ter diante de nós algo que nos lembre a morte, pois isto nos ajuda a compreender a impermanência da vida terrena, e esta compreensão pode nos ajudar a prepararmos nossa própria morte. Aquele que está bem preparadosabe que ele não é nada perto de Wakan-Tanka, que é tudo; então ele conhece este Mundo divino, que é o único real”.
[30] Segundo a mitologia dos sioux, no princípio do ciclo um bisonte foi colocado no Oeste para reter as águas que ameaçavam a Terra. A cada ano o bisonte perde um pelo, e em cada uma das idades cíclicas perde uma pata; quando todas as quatro patas e todos os pelos tenham desaparecido, as águas inudarão novamente o mundo e o ciclo terá chegado ao fim. O mesmo mito acha-se, em uma forma bastante concordante, na tradição hindu: cada pata do touro Dharma – a Lei divina – representa uma idade (yuga) do ciclo total (maha yuga), e em cada idade o touro retira uma pata. Ao longo das quatro idades, a espiritualidade obscurece progressivamente, até que o ciclo termina num cataclisma; então a espiritualidade primordial é restaurada e um novo ciclo começa. Tanto os pele-vermelha como os hindus admitem que, em nossa época, o bisonte – ou o touro – sustenta-se em uma só pata e está quase sem pelos. Existem mitos análogos em outras tradições.
[31] Mediante um decreto que revela tanta incompreensão quanto hostilidade, este rito de “custódia da alma” foi proibido pelo governo em 1890, e chegou-se inclusive a exigir que todas as almas guardadas pelos sioux fossem liberadas numa certa data fixada arbitrariamente por decreto. Para uma descrição deste rito tal como foi praticado em 1882, ver Alice C. Fletcher, The Shadow of Ghost Lodge, Cambridge, 1884).
[32] O bisonte, que representa o Universo, contém todas as coisas, como o cavalo ashwamedha. A parte que corresponde ao gênero humano – e também à Mulher Bisonte Branco – é um pedaço de carne tirado do quarto dianteiro. Esta carne é para os índios – mutatis mutandis – o que a Sagrada Eucaristia é para os cristãos; o Calumet tem o mesmo papel, mas a analogia formal é menos direta.
[33] A erva aromática – wachanga – que os índios preparam em forma de trança tem a mesma função ritual que o incenso nos diversos cultos do “velho mundo”.
[34] “Elevamos as mãos quando rezamos, porque dependemos inteiramente do Grande Espírito; sua Mão generosa atende a todas as nossas necessidades. Depois golpeamos o solo porque somos miseráveis criaturas, vermes que se arrastam diante de sua Face” – palavras de um sioux pé-preto ao Padre de Smet (Life, Letters and Travels, F.P.Harper, New York, 1905)
[35] Deste modo o cropo material ou grosseiro é restituído aos elementos de onde provém; ele é deixado esposto aos agentes do céu: os Quatro Ventos, as chuvas, os “seres alados” do ar, cada qual, assim como a terra, absorvendo uma parte dele.
[36] O caráter sagrado do parentesco é um dos aspectos mais importantes da civilização pele-vermelha: como a criação é essencialmente una, todas as suas partes estão relacionadas. Os índios dirigem-se uns aos outros, não por seus nomes próprios, mas com um termo que expressa um grau de relação determinado mais pela idade do que pelos laços de sangue. Assim, um jovem dirige-se a uma pessoa de mais idade chamando-a de “pai” ou “mãe”, ou, se a diferença de idade é muito grande, “avô” e “avó”; por sua vez, os mais velhos dirigem-se aos mais novos chamando-os de “filho”, “filha”, “neto” ou “neta”. Para os índios, todos os graus de parentesco terrestre simbolizam o parentesco metafísico entre o homem e o Grande Espírito, ou entre o homem e a Terra, considerada como Princípio. Ao utilizar estes termos, os píndios invoca realmente o Princípio, ou ao menos recordam-no; o indivíduo, como todas as coisas, é para eles como um reflexo obscurecido da Realidade principial.
[37] Para o índio todo ato tem um sentido metafísico, e especialmente a caça, à qual consagra uma grande parte do seu tempo. A perseguição e morte de um animal são vistos pelos índios segundo dois aspectos aparentemente opostos, mas complementares: a morte simboliza a destruição da ignorância, mas também um contato com o Grande Espírito. Este último significado explica a importância ritual do rastreamento, pois ao seguir a pista do animal, se está ritualmente – e portatnto virtualmente – no caminho que conduz a Wakan-Tanka; encontrar a presa, em meio às dificuldades e aos perigos, equivale a encontrar o Grande Espírito, que é para todos os povos tradicionais a finalidade da existência. “A doutrina dos vestigia pedis é comum aos ensinamentos grego, cristão, hindu, budista e islâmico e constitui a base da iconografia das “pegadas”” (Cf., por exemplo, Platão, Fedro, 253A, 266B; e Rumi, Mathnavi, c60-161). “Qual é o viático do sufi? São as pegadas. Persegue a caça como um caçador; vê o rastro do gamo almiscareiro e segue suas pegadas”. Mestre Eckhart fala da “alma que vai à caça ardente de sua presa, o Cristo”. As pegadas dos precursores podem ser seguidas até a Porta do Sol, Janua Coeli, o Final do Caminho; mais além não se pode seguir sua pista. O simbolismo do rastreamento, assim como o do “erro” (pecado) enquanto “falha em acertar o alvo” é um dos que nos chegaram das mais antigas civilizações de caçadores” (Anada Coomaraswamy, Hindouisme et Bouddhisme). Assinalemos também que cada arma de caça ou de guerra tem seu significado próprio. Assim o arco é especialmente sagrado para os índios, e as flechas são quase sempre decoradas com uma linha vermelha em zig-zag que representa o relâmpago , ou o Conhecimento que é lançado pelo Olho único de Wakinyan-Tanka, a grande Ave do Trovão do Oeste. As flechas assim consagradas são literalmente riscos de luz que dissipam as trevas; são assimiláveis ao raio – vajra – do Indra védico ou à espada dos cruzados cristãos, que era considerada comoum fragmento separado da “Cruz de luz”. A espada da “Guerra santa” islâmica tem o mesmo sentido.
[38] O kinnikinnik, também chamado chanshasha, é um ingrediente do tabaco ritual dos sioux; é a casca interior seca do alisio vermelho ou do cornejo vermelho (Cornus stolonifera). Raramente é fumado só devido ao seu gosto amargo; é costume acrescentar uma parte igual de tabaco enrolado da tribo dos rees ou arikara, ao qual se adiciona uma pequena porção de raiz ou erva odorífica, como a raiz da Artemisia (Artemisia annua); a mistura dos ingredientes é sempre feita de modo ritual.
[39] Com este gesto se pede perdão à alma do animal morto e assim o sopro vital que lhe foi tirado é ritualmente restituído mediante o Cachimbo sagrado.
[40] O couro, identificado simbolicamente com o bisonte, é, como este, o Universo; em outros tempos, quando todos os índios possuíam uma dessas peles, usavam-nas não só para aquecer-se, mas também como suporte para a realização de sua identidade – enquanto homens – com o Universo, a Totalidade.
[41] Os três pés desta trípode estão orientados para o Oeste, o Norte e o Leste; ela é deixada aberta para o Sul, direção que, para os sioux, é tomada pelos defuntos. O saquinho de mistério é pendurado deste lado, imediatamente abaixo da intersecção dos três bastões; este ponto central representa a Wakan-Tanka, para quem a alma irá partir logo, e deste ponto pende até o solo uma tira de couro que representa o caminho que conduz da terra a Wakan-Tanka. Este caminho que a alma precorre agora e a posição do saquinho indicam que a viagem está quase terminando.
[42] Trata-se novamente do Bisonte mitológico e celeste, do Bisonte Fêmea Branco, manifestação do Logos revelador.
[43] Os sioux designam deste modo os “dias” do “fim do mundo”, quando a lua se tornará vermelha e o sol azzul. Se admitimos, como em todas as doutrinas tradicionais, que o macrocosmo tem sua correspondência no microcosmo, existe um “fim do mundo” também para o ser individual, quando este recebe a iluminação de Wakan-Tanka; o ego – ou a ignorância – morre, e o ser vive da permanência do Espírito.
[44] Quando o Calumet está cheio, todo o espaço – representado pelas oferendas aos Poderes das Seis direções – e todas as coisas criadas – figuradas pelas porçoes de tabaco – estão concentrados num único ponto: o fornilho ou “coração” do Cachimbo. Sendo o mundo, o macrocosmo, o Calumet é também o homem, o microcosmo; e o índio que enche o Cachimbo deve identificar-se com ele e assim atualizar não só o centro do mundo, mas também seu próprio centro. Isto implica que ele se “dilata” virtualmente, de modo que as seis Direções do espaço, que estavam no exterior, situam-se então no interior. Quando esta “dilatação” ou expansão se torna efetiva, o homem deixa de ser uma parte oufragmento e se torna total e santo; a ilusão da separativiodade é abolida. Para tornar mais clara esta identidade misteriosa entre o homem e o Cachimbo-altar, citaremos este canto dos índios osage:
Esta gente tinha um Calumet do qual fizeram seu corpo.
Ó Hon-ga, tenho um Calumet do qual fiz meu corpo;
Se Tu também fizeres dele teu corpo, terás um corpo liberado do que causa morte.
Vê a ligação do pescoço, fiz dela a ligação do meu próprio pescoço.
Vê a boca do Calumet, fiz dela minha própria boca.
Vê o lado direito do Calumet, fiz dele o lado direito do meu corpo.
Vê a espinha do Calumet, fiz dela minha própria espinha.
Vê o lado esquerdo do Calumet, fiz dele meu próprio lado esquerdo.
Vê a cavidade do Calumet; fiz dela a cavidade do meu próprio corpo.
Vê o que une o Cachimbo ao cano, fiz dele minha traquéia.
Utilizai o Calumet como oferenda em vossas súplicas:
Vossas preces serão prontamente atendidas.
(Extraído de Francis La Flesche, War Ceremony and Peace Ceremony of the Osage Indians, Washington, 1939)
[45] Uma vez que para o sioux a tenda – tipi – é uma imagem do mundo, o fogo mantido em seu centro representa – ou melhor, “é” – Wakan-Tanka “no mundo”. Par sublinhar o caráter ritual deste fogo central, assinalaremos que, na época em que os sioux ainda eram nômades, um homem designado como “guardião do fogo” erguia sua tenda habitualmente no centro do acampamento circular. Quando o acampamento se deslocava, o guardião levava o fogo em um pequeno tronco de árvore, e quando o acampamento se estabelecia de novo, todas as tendas acendiam seus fogos neste fogo central. Este fogo nunca era apagado e só era substituído por outro – sempre de maneira ritual – apenas em caso de uma grande calamidade, ou quando todo o acampamento necessitasse de uma purificação completa.
[46] Assinalemos que o ritual completo do Calumet consta de três fases distintas: a “purificação”, com a fumaça da erva ritual; a “expansão”, pela qual todo o Universo é transferido para o Calumet; e, por último, a “identidade” ou o sacrifício de tudo no fogo que representa Wakan-Tanka “no mundo”. Estas três fases são comuns, de uma forma ou de outra, a todos os métodos tradicionais e ortodoxos de realização espiritual.
[47] Alce Negro aparentemente perdeu de vista o fato de que estava descrevendo um ritual e não sua instituição, e assim ele substitui o “guardião do Cachimbo” por Grande Chifre Ôco, retomando o relato inicial.
[48] Cada vez que se fuma em um Calumet original, as cinzas são recolhidas para serem transportadas, em uma época determinada, a um alto cume, de onde são esparcidas aos quatro Ventos, de preferência o pico Harney nas Black Hills (Pa Sapa), que os sioux consideram como o centro do mundo.
[49] Esta palavra, hokshichankiya, não é usada em linguagem corrente. Significa “semente primordial”, “raiz”, “fonte”, “influência espiritual”.
[50] Para captar mais claramente o significado deste ato ritual devemos lembrar que o tipi é o Universo, o cosmo, enquanto que o espaço exterior ao tipi é simbolicamente o Infinito, Wakan-Tanka.
[51] Segundo os sioux, a alma liberada viaja para o Sul, ao longo do “caminho do Espírito” – a Via Láctea – até um lugar em que o caminho se divide. Ali está sentada uma anciã chamada Maya Owichapaha, “a que empurra até a outra margem”, ou seja, a que julga as almas. Deixa os bons prosseguirem seu caminho pela estrada da direita, enquanto “empurra para a outra margem”, à esquerda, os maus. Os que vão pela direita chegam à união com Wakan-Tanka, enquanto que os que vão pela esquerda devem permanecer num estado condicionado até que estejam suficientemente purificados.
[52] A grande “Ave do Trovão” do Oeste, Wakinyan-Tanka, é um dos aspectos mais importantes e profundos da doutrina sioux. Os índios a descrevem dizendo que ela vive “numa tenda localizada no cume de uma montanha situada no extremo do mundo aonde se põe o sol. Ela é múltipla, mas todos os seus duplos não são mais do que Um. Não tem forma, mas possui umas asas que possuem cada qual quatro articulações; não tem patas, mas possui garras imensas; não tem cabeça mas possui um bico imenso com fileiras de dentes como os dos lobos; sua voz é o estalo do trovão, e o bater de suas asas contra as nuvens é o fragor do trovão que retumba; tem um olho só, cujo olhar éo relâmpago. Num grande cedrosituado ao lado de sua tenda acha-se seu ninho, feito de ossos secos; ali acha-se um ôvo enorme do qual saem continuamente suas crias. Ela devora as crias e cada uma delas se converte em um de seus inumeráveis duplos. Voa ao longo de toda a extensão dos céus, escondida em um manto de nuvens. Suas funções consistem em livrar o mundo das impurezas e combater os monstros que sujam as águas. Seu símbolo é uma linha vermelha em zig-zag com uma forquilha num dos extremos”. (J.R. Walker, in Antrhropological Papers of the American Museum of Natural History, vol XVI, parte II, New York, 1917). Esta Ave do Trovão é na verdade Wakan-Tanka enquanto dispensador da Revelação, simbolizada pelo relâmpago; corresponde a Garuda, o grande pássaro – com um olho só – da tradição hindu, e ao Dragão chinês que cavalga as nuvens de tempestade e cuja voz é o trovão; como dispensador da Revelação, tem a mesma função do Arcanjo Gabriel nas religiões semíticas. É normal que a Ave do Trovão seja para os índios o Protetor do Cachimbo sagrado, pois este, como o relâmpago, é o eixo que une o céu e a terra.
[53] A entrada na luz depois da permanência na escuridão da tenda de purificação representa a liberação com respeito ao Universo, ou também, do ponto de vista do microcosmo, a desaparição do ego; o ego e o mundo são “escuros”, não possuem mais do que uma realidade relativa ou ilusória, pois, em última instância, não existe outra realidade distinta de Wakan-Tanka, que é representado aqui pela luz do dia ou pelo espaço que rodeia a tenda. Esta libertação com respeito ao cosmo, ou esta desaparição da individualidade, está particularmente bem represntada no rito de Purificação dos índios osage: “Ao final da cerimônia, o chefe diz aos homens que segurem cada um uma das varas que formam a armação da pequena habitação, e quando todos o fizeram, ele exclama: ‘Não há outra saída, amigos meus!’, e juntos lançam a casinha pelos ares em direção ao sol poente” (Francis La Flesche, War and Peace ceremony of the Osage Indians, Washington, 1939)
[54] Traduzimos wichasha wakan como “homem santo” ou “sacerdote”, em vez de “homem-medicina”, expressão incorreta empregada em muitas obras sobre os índios. O termo lakota que corresponde a “médico” ou “doutor” é pejuta wichasha. Para esclarecer melhor as coisas, vamos reproduzir a explicação dada por Espada, um sioux ogalalla, a J.R. Walker: Wichasha wakan designa um sacerdote lakota da antiga religião; um homem-medicina se chama, entre os lakotas, pejuta wichaska. Os brancos designam nosso wichasha wakan como homem-medicina, o que é um erro, Ademais, dizem que um wichasha wakan “faz medicina” quando executa um ritual; isto também é um erro. Os lakotas só chamam a uma coisa “medicina” quando ela é usada para curar um enfermos ou um ferido, e então o termo certo é pejuta.” (Anthropological Papers of the American Museum of Natural History, vol XVI, parte II, pg. 152)
[55] O índio identifica-se espiritualmente com a Qualidade cósmica – ou divina – do ser ou da coisa que aparece numa visão, seja um mamífero, um pássaro, um dos elementos ou qualquer aspecto da criação. Para que este “Poder” nunca o abandone, o índio leva sempre consigo alguma forma material que represente o animal ou objeto do qual recebeu seu “Poder”. Estes objetos foram muitas vezes chamados de “fetiches”, o que é impróprio, pois correspondem mais àquilo que o cristão chama de “anjo custódio”; para o índio, os animais e todas as coisas inanimadas são os “reflexos” – em uma forma material – dos Princípios divinos. O índio não se liga à forma como tal, mas ao Princípio que está de certo modo “contido” na forma.
[56] O próprio Alce Negro recebeu sua grande visão quando tinha apenas nove anos.
[57] Esta humilhação através da qual o índio se torna “menor que a menor formiga”, como disse um dia Alce Negro, equivale àquilo que os cristãos chamam de “humildade” ou “pobreza”; é o faqr do sufismo ou o balya do hinduismo; esta pobreza é a condição dos seres que se dão conta de que, em comparação com o Princípio, sua própria individualidade não é nada.
[58] Quando um homem vai implorar uma visão, é costume que seus parentes e amigos se reunam em sua tenda para cantar e rezar durante os dias e as noites que dura sua lamentação. Ao menos uma vez por noite, todos saem e olham em silêncio para o lugar em que se acha o implorante; observam com atenção qualquer sinal que possa aparecer nesta direção; um relâmpago, por exemplo, símbolo da Revelação, é considerado um sinal particularmente favorável.
[59] A mensagem “Esteja atento!” expressa muito bem um estado de espírito característico dos índios; implica que em todo ato, em toda coisa, em todo momento, o Grande Espírito está presente, e que a pessoa deve estar contínua e intensamente “atento” à Presença divina. Esta presença de Wakan-Tanka – e a consciência que se tenha dela – é aquilo que os santos cristãos denominaram “a vida no momento”, o “eterno agora”, ou aquilo que o Sufismo designa pela palavra waqt, “instante”, ou seja, “instantaneidade espiritual”. Em lakota, esta presença é denominada Taku Shkanshkan, ou simplesmente Shkan na linguagem dos homens santos. Citemos a respeito a conversação entre um sacerdote lakota e J.R. Walker: “O que é que faz cairem as estrelas? Taku Shkanshkan… faz cair a tudo o que cai e mover-se tudo o que move. Quando faz um movimento, que é que o faz mover-se? Shkan. Quando se lança um flecha com o arco, o que a faz deslocar-se pelo ar? Shkan… Taku Shkanshkan dá o espírito ao arco e o faz lançar a flecha. Que é que faz a fumaça subir? Taku Shkanshkan. O que faz com que a água corra num rio? Taku Shkanshkan. O que faz com que as nuvens se movam por cima do muno? Taku Shkanshkan. Alguns lakotas me disseram que este Taku Shkanshkan é o Céu; é assim? Sim. Taku Shkanshkan é um Espírito, e o azul do Céu é tudo o que a Humanidade pode ver d’Ele, mas ele está em toda parte. Taku Shkanshkan é Wakan-Tanka? Sim” (Anthropological Papers of the American Museum of National History, vol. XVII, pg. 11)
[60] Em nossos dias, alguns lakota recorrem a um ritual diferente do que descrevi neste capítulo. As mulheres estabelecem o recinto sagrado no cume da montanha preparando primeiro um leito de sálvia disposto na direção Leste-Oeste e que tem uma pedra como almofada; são colocadas como oferendas flâmulas azuis, brancas, vermelhas e amarelas nas quatro esquinas, que formam um retângulo ao redor do leito. Nestas estacas são penduradas como oferendas bolsas de tabaco. Três grandes cordões, cada um com centenas de saquinhos de tabaco atados, são presos às varas, do Sul para o Oeste, do Oeste para o Norte, do Norte para o Leste, deixando aberto o lado Sul; então é cravado no solo, em frente à almofada de pedra, um bastão de madeira de cerejeira que representa a árvore da vida e que tem uma pluma de águia na ponta. O implorante, que jejuou todo o dia e que acaba de realizar os ritos de purificação, acerca-se então do lugar; ele e todas as pessoas presentes voltam-se para cada uma das quatro Direções e oferecem uma oração apropriada para cada qual. A seguir o imploramte entra no recinto sagrado, com seu Calumet e vestido tão somente com sua tanga e uma manta; a cadeia de saquinhos de tabaco é fechada atrás de si e ele começa a lamentar-se, pedindo ajuda ao Grande Espírito; e permanece neste recinto, orando sem cessar, durante um período que vai de um a quatro dias. Não é raro que lhe sejam atados mãos, braços e pés, o que é uma forma de sacrifício muito penosa, pois mesmo no verão as noites são muito frias no Estado de Dakota.
[61] No Atharva Veda Sanhita das Escrituras hindus, o significado simbólico da árvore do mundo é idêntico ao que tem a árvore para os lakota: como afirma Ananda Coomaraswamy, “a árvore do mundo, cujo tronco é também uma coluna do sol, o poste do sacrifício ou o axis mundi que se eleva sobre o altar que existe no umbigo da terra, penetra pela porta do mundo e se desenvolve por cima do teto do mundo”, como o “ramo não-existente (não-manifestado) que nossos defuntos conhecem como o Supremo” (X, 7-21).
[62] Alce negro explicou-nos um dia que a árvore sagrada destinada à dança do sol é capturada como um inimigo pela seguinte razão: “Pouco tempo depois que nos foi entregue o Cachimbo sagrado, saímos à caça e troxemos a cabeleira de um inimigo; fixamos esta cabeleira no Cachimbo para assim guardar uma alma em nosso centro, a fim de que os bípedes, junto com os demais seres do Universo, estivessem representados no Cachimbo. Em memória deste fato colhemos a árvore como se fosse um inimigo, pois, como vêem, a árvore também vai agora para o nosso centro como o fez a alma do inimigo morto. Os nossos não matam jamais como o fazem os brancos; para nós era uma coisa sagrada e honrávamos grandemente os mortos em batalha, inclusive quando eram inimigos”. Cremos que não é demais complementar este relato de Alce Negro com esta explicação de origem omaha: “Meu filho viu uma árvore maravilhosa. As Aves do Trovão vão e vêm ao redor desta árvore, e formam uma estrela de fogo que deixa atrás de si quatro caminhos de erva queimada que se estendem até os Quatro Ventos. Quando as Aves do Trovão pousam nesta árvore, esta incendeia-se e o fogo sobe até a cúspide. A árvore arde, mas ninguém pode ver o fogo, salvo à noite. A tribo deliberou sobre o que isto poderia significar, e os chefes disseram: “Vamos buscá-la; coloquem seus apetrechos e preparem-se como se fossem para o combate”. Os homens despiram-se, pintaram-se, colocaram seus adornos e foram em busca da árvore, que erguia-se junto a um lago. Precipitaram-se sobre ela como se a atacassem, como se fosse um guerreiro inimigo. Todos correram. O primeiro a alcançar a árvore foi um ponca, que a golpeou como se golpeasse um inimigo. Derrubaram a árvore, e quatro homens em fila a levaram sobre os ombros até a povoação.” (Fletcher & La Flesche, The Omaha Tribe)
[63] Jalal ed-Din Rumi diz em seu Matnawi, falando dos derviches e do combate espiritual: “Existem homens que dançam e giram no campo de batalha; neles, músicos tocam pandeiros: em seu êxtase, os mares explodem em espuma. Vocês não o vêem, mas, para seus ouvidos, até as folhas das árvores batem palmas… é preciso possuir um ouvido espiritual, não o do corpo.”
[64] Esta lança ou vara servia para “contar golpes”, ou seja, para tocar o inimigo – não para matá-lo – o que era considerado uma grande proeza.
[65] O ato espiritual não concerne, propriamente falando, ao indivíduo, mas ao estado de existência do qual o ser específico é uma expressão, e a fortiori à Divindade da qual ele é como que um reflexo. Um ato implica sempre a consciência da distinção entre o “eu” e o “próximo”, e, num grau mais elevado, entre “nós” e o Si”.
[66] Trata-se da tira de couro cru que vai da árvore ao peito do dançarino.
[67] Esta brasa deve ter sido tirada de um fogo que esteve ardendo durante toda a noite anterior, e que arderá todas as noites enquanto durar a dança. Está situado a Leste, fora do pavilhão, e, segundo Alce Negro, mantém-se aceso para recordar a eterna presença de Wakan-Tanka. Durante o dia o fogo não é necessário, pois o sol está aí para recordar esta presença.
[68] Os sioux também pintam de negro o rosto por ocasião da dança que se executa quando regressam do caminho da guerra, pois, como dizia Alce Negro, “sabemos que indo pelo caminho da guerra fazemos algo de mau, e desejamos ocultar nossos rostos de Wakan-Tanka”.
[69] Isto é evidente, pois o índio devia suportar os piores sofrimentos sem uma queixa. Todos os povos guerreiros são estóicos, mas nenhum superou os pele-vermelhas no domínio da dor. As lágrimas em questão tem a finalidade de apiedar a Divindade.
[70] Repetimos que o ego identifica-se sempre com a coletividade. “Que todos os seres sejam felizes”, diz a ladainha budista. Por outro lado, não custa lembrar que a vida “sagrada” e a conformidade ao “mistério” coincidem com a obtenção da salvação.
[71] A Bisonte celeste.
[72] A “nação” ou o “povo” identificam-se em última instância com o “gênero humano”. Contando em milênios, a divisão em “tribos” é relativamente tardia; é o que os sioux expressam dizendo que todas as tribos indígenas separaram-se deles no transcurso dos séculos, que eles são a humanidade primitiva; outros índios afirmam a mesma coisa de suas respectivas tribos.
[73] Os quatro passos representam para os sioux as quatro idades ou fases de um ciclo; a idade da pedra, a idade do arco, a idade do fogo e a idade do cachimbo; a pedra, o arco, o fogo e o cachimbo constituem cada qual o prinipal suporte da idade respectiva. As quatro idades podem também referir-se, do ponto de vista microcósmico, às quatro fases da vida humana, do nascimento até a morte.
[74] Os arikara pertencem à família linguística dos caddo; são, portanto, parentes próximos dos pawnies.
[75] Não devemos esquecer que o bisonte é como uma encarnação animal do princípio Terra, cuja manifestação material é a terra visível; mas a Terra-Princípio é evidentemente divina, e é esta a razão pela qual a Mulher Bisonte vem do Céu. Terra e Céu – as Regiões visíveis – têm seu protótipo eterno no Divino; estes protótipos formam uma dupla, não se confundem; mas Wakan-Tanka, em sua unidade suprema, supera esta dualidade. O fato de que o Calumet foi trazido por um Bisonte fêmea celeste significa que aquele é um dom da dupla Terra-Céu: a matéria do Calumet indica a Terra, e a fumaça, o Céu.
[76] E cujos protótipos acham-se incluídos no princípio Terra.
[77] Esta definição é notável, pois contém a doutrina do altar primordial, do santuário enquanto tal.
[78] A analogia com o simbolismo cosmológico dos povos mais antigos aparece aqui de modo impressionante; recordemos por exemplo o freixo Ygdrasil, o eixo do m undo na mitologia germânica.
[79] O continente pele-vermelha, a terra que se estende entre dois oceanos.
[80] É sasbido que tocar um inimigo sem matá-lo, com uma vara adornada de plumas, era considerado uma façanha particularmentte meritória.
[81] O papel da pintura ritual encon tra-se também no Hinduismo; na maior parte das civilizações a pintura é substituída pela indumentária, como no caso da vestimenta ocre do sannyasi ou o hábito monacal.
[82] Também esta obscuridade é simbólica: indica a passagem mais ou menos “caótica” de um plano de consciência a outro.
[83] Por transposição espiritual: o “eu” se torna uno com o próximo. O simbolismo iniciático desta passagem é especialmente explícito.
[84] Como a fórmula de cortesia árabe: “Minha casa é tua casa” (dari darek)
[85] Os índios nos falaram de uma mulher que, por descuido, entrou um dia na tenda de um “homem de mistério” e com sua presença tirou o poder não só do homem, como também da “bolsa de medicina” deste, que estava pendurada no tipi. Fatos análogos, ainda que menos extremados – o caso citado parece ser muito especial – encontram-se na maioria das tradições; existem incompatibilidades de correntes sutis que devem ser levadas em conta, mas que podem ser neutralizadas por outras influências. Trata-se, em todo caso, do plano psíquico e não do plano espiritual; não obstante, o espiritual pode depender em certa medida – não em si, mas em sua manifestação – de veículos psíquicos, o que explica as prescrições de purificação que se encontram nas mais diversas religiões.
[86] Devemos recordar que os índios, como todos os povos de espírito ainda primordial, vêem, em primeiro lugar, não o plano de existência que limita, mas a essência que atravessa todos os planos de existência; o bisonte visível “é” o Bisonte-Princípio, ma apenas em um dado nível de manifestação cósmica. Os pele-vermelhas não “adoram”, evidentemente, o animal bisonte, posto que o matam; entretanto, jamais esquecem o “gênio” da espécie, no sentido mais elevado do termo.
[87] Como o índio, o bisonte vive em grandes rebanhos uma vida nômade.
[88] Com estas palabras Bisonte Lento declara expressamente que a impureza menstrual não atinge o indivíduo.
[89] O vento do Oeste, as tormentas.
[90] O vento Norte purifica pelo frio.
[91] O pássaro carpinteiro de cabeça vermelha, cujo nome corrente é kankecha; este pássaro vive no Leste, de onde vem a luz.
[92] Sabe-se que a cabeça de um Calumet tem a forma de um T invertido, pelo menos entre os sioux e a maior parte das outras tribos; por isso, a parte que ultrapassa o fornilho – que é o “altar” – é consniderado como o “pé” do Calumet, enquanto que a boquilha é sua “boca”.
[93] Os bisontes esfregam-se nas árvores e deixam nelas pelos que os índios recolhem piedosamente.
[94] Aqui a árvore é que é divinizada porque une a terra ao céu, enquanto que o bisonte é considerado neste caso sob seu aspecto puramente terrestre. Os índios consideram todas as coisas da natureza alternativamente desde o ponto de vista da essência universal, que vincula as coisas ao Divino, e desde a acidentalidade existencial, que as limita no nível da sua aparência imediata. Este modo de ver as coisas encontra-se em todas as tradições de caráter mais ou menos primordial ou mitológico que conservam ainda uma vitalidade suficiente.
[95] Os sioux tem o costume de traçar os caminhos rituais com a vara que serve para carregar o Cachimbo e que, por esta razão, é um auxiliar do fogo e um instrumento indispensável para o sacrifício. Os índios dizem que representa a vontade do homem, posto que né necessária uma iniciativa por parte do homem para que possa fazer um sacrifício ou receber a sabedoria de Wakan-Tanka.
FONTE: BLOG ESPIRITUALIDADE E METAFÍSICA (TRAD: TITO KEHL)
ÍNDICE
PROLOGO – INTRODUÇÃO – PREFÁCIO
I – II – III – IV – V – VI – VII – VIII
NOTAS