A FESTA NUPCIAL (Mt 22,1 ss)

PELAS NÚPCIAS HUMANAS SE PERPETUA A VIDA RACIAL TERRESTRE – PELAS NÚPCIAS DIVINAS SE REALIZA A VIDA INDIVIDUAL CELESTE

Jesus voltou a falar em parábolas aos chefes dos sacerdotes e aos anciãos do povo. Ele dizia: “O Reino do Céu é como um rei que preparou a festa de casamento do seu filho. E mandou seus empregados chamar os convidados para a festa, mas estes não quiseram ir. O rei mandou outros empregados, dizendo: ‘Falem aos convidados que eu já preparei o banquete, os bois e animais gordos já foram abatidos, e tudo está pronto. Que venham para a festa’. Mas os convidados não deram a menor atenção; um foi para o seu campo, outro foi fazer os seus negócios, e outros agarraram os empregados, bateram neles, e os mataram. Indignado, o rei mandou suas tropas, que mataram aqueles assassinos, e puseram fogo na cidade deles.
Em seguida, o rei disse aos empregados: ‘A festa de casamento está pronta, mas os convidados não a mereceram. Portanto, vão até as encruzilhadas dos caminhos, e convidem para a festa todos os que vocês encontrarem’. Então os empregados saíram pelos caminhos, e reuniram todos os que encontraram, maus e bons. E a sala da festa ficou cheia de convidados.
Quando o rei entrou para ver os convidados, observou aí alguém que não estava usando o traje de festa. E lhe perguntou: ‘Amigo, como foi que você entrou aqui sem o traje de festa?’ Mas o homem nada respondeu. Então o rei disse aos que serviam: ‘Amarrem os pés e as mãos desse homem, e o joguem fora na escuridão. Aí haverá choro e ranger de dentes’. Porque muitos são chamados, e poucos são escolhidos.”

(Mateus 22:1-14)

“O Reino dos Céus é semelhante a um rei que celebrava as núpcias de seu filho”.
Em todas as literaturas, dentro e fora do cristianismo, a experiência mística aparece invariavelmente em roupagens de vivência erótica. Na Bíblia, não é somente no “Cântico dos Cânticos” de Salomão, mas também no Evangelho do Cristo, que mística e erótica figuram uma ao lado da outra.
Eros e Logos aparecem sempre de mãos dadas.
Para, de algum modo, compreender tão paradoxal mistério, é necessário que assumamos a perspectiva seguinte:
A vida é a quintessencia do Universo. A vida é a Divindade, Brahman, Tão, Yahveh. A realidade do Universo é Vida.
É da íntima natureza da Vida, Uma e Única, que ela se manifeste em forma de Vivos; que o Eterno Uno se revele sem cessar em Verso temporário, formando o Universo, a Unidade na Diversidade.
O Universo é Vida manifestada em Vivos.
Mas, os Vivos, não podendo perpetuar-se individualmente, têm a irresistível tendência de se perpetuarem racialmente, na imortalidade da espécie.
A impossibilidade da imortalidade individual é substituída pela possibilidade da imortalização racial.
O instinto sexual – libido, no mundo animal, erótica, no mundo hominal – está a serviço da imortalização da espécie; daí, a sua irresistível veemência. É imperativo categórico da Vida que os Vivos se perpetuem.
No mundo hominal superior, a mística realiza, no plano individual, o que a erótica procura realizar no plano inferior da raça. A mística realiza a imortalidade simultânea do indivíduo, ao passo que a erótica realiza a imortalidade sucessiva da espécie.
Erótica e mística, como se vê, estão a serviço da imortalidade, cada uma na sua esfera.
Por isso, a estranha afinidade entre o imperativo sexual, que visa procrear a imortalidade racial, e o imperativo espiritual, que crea a imortalidade individual. O crear supera o procrear.
No plano superior, a tendência erótica decresce na razão direta do crescimento da experiência mística; quando esta atinge o mais alto zênite, aquela baixa ao mais profundo nadir. A imortalidade qualitativa extingue o desejo da imortalização quantitativa.
Os grandes místicos são, geralmente, dotados de uma veemente potencialidade erótica – não no sentido de que, antes de se tornarem místicos, devam ter sido atualmente eróticos, como vemos na vida de Santo Agostinho e de Mahatma Gandhi; mas no sentido de que uma intensa vitalidade, que se revela em potencialidade erótica, se pode manifestar em potencia mística, como no caso de Francisco de Assis, e, sobretudo, de Jesus de Nazaré, nos quais não aparece nenhuma erótica atual, mas a erótica potencial se manifestou diretamente em mística atual. Uma erótica sadia, não eclodida, pode eclodir numa grande mística.
À luz destas premissas, é possível compreender, de algum modo, o constante paralelo entre erótica e mística, entre as núpcias humanas e as núpcias divinas.
Mestres hindus de Yoga Tântrica vão ao ponto de recomendar a seus discípulos a prática de interromperem o orgasmo sexual da erótica humana no ponto culminante, antes de o consumarem, a fim de entrarem subitamente no entusiasmo espiritual da mística divina. Semelhante prática parece quase um desafio sádico para o homem e a mulher comum; mas baseia-se na suposição tácita de haver uma afinidade latente entre Eros e Lógos. E, na realidade, tanto a erótica como a mística giram em torno do início de uma vida nova, seja no plano horizontal dos egos humanos interessados em perpetuar a vida racial da humanidade, seja na dimensão vertical do Eu divino responsável pela imortalização da vida individual do homem. Aquela se realiza no infra-consciente, esta no supra-consciente.
No orgasmo erótico ocorre um mergulho momentâneo de duas vidas individuais – homem e mulher – no oceano cósmico da Vida Universal, onde se acende uma terceira vida, a do filho.
No entusiasmo místico há um mergulho-relâmpago duma vida individual humana no mar imenso da Vida Universal da Divindade, e, neste momento, se acende na creatura humana a vida imortal, integrada na Divindade; o filho concebido não é uma entidade alheia separada do místico, mas é ele mesmo numa nova dimensão de existência. Pode-se dizer que, na experiência mística, ocorre uma auto-concepção: o homem imortalizável se torna imortalizado; o ponto culminante na vida humana é essa auto-concepção, que se consumará na auto-parturição, em “dar a luz a si mesmo”, como diz um autor moderno. “Quem não nascer de novo pelo espírito não pode ver o Reino de Deus”.
A erótica, que é a mística da carne, perpetua a imortalidade racial da humanidade.
A mística, que é a erótica do espírito, realiza a imortalidade individual do homem.
Freud escreveu um livro entitulado “Eros e Thánatos” (Eros e Morte), como que sentindo a afinidade entre Amor e Morte. Se não houvesse a morte dos indivíduos, não haveria necessidade para Eros, destinado a preencher com vida nova as lacunas que Thánatos abre nas vidas individuais. Eros equilibra o déficit que Thánatos causa incessantemente.
Mas, quando o Eros do ego culmina no Lógos do Eu, não há mais lugar para Thánatos, porque Lógos é Athánatos, imortalidade. Quando a mística atinge o seu zênite, a erótica desce a seu nadir.
A mística, em sua plenitude, não é uma erótica sublimada, mas sim uma erótica totalmente superada pela mística.
“Um rei fez as núpcias para seu filho”…
a Divindade, enviando ao mundo o “Unigênito do Pai”, o “Primogênito de todas as creaturas”, realizou as núpcias místicas do Cristo Cósmico, do Verbo, do Logos, com a natureza humana de Jesus de Nazaré. E o Jesus humano, integrando-se totalmente no Cristo divino, redimiu a sua humanidade individual, divinizando a natureza humana.
Desde então, existe uma humanidade Cristo-redimida – não a humanidade coletiva do gênero humano, que continua irredenta, mas sim, a humanidade individual em Jesus.
Estas núpcias místicas do Cristo Cósmico com a natureza humana de Jesus, esse conúbio metafísico do Verbo com a carne, pela Encarnação, foram o prelúdio e o penhor para que a carne se fizesse Verbo, na Ressurreição; e, na Ascensão, o Verbo encarnado e a carne verbificada subiram aos céus.
Ora, essa theosis, que aconteceu uma vez, em Jesus, pode acontecer mais vezes; a humanidade, uma vez Cristo-remida em Jesus, pode ser Cristo-remida em outras creaturas humanas. Um ser humano disse “Está consumado”, está realizada a tarefa de cristificação pelas núpcias místicas com o Verbo.
A parábola do pai que fazia as núpcias de seu filho tem uma perspectiva cósmica de infinita profundidade e amplitude…

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O FILHO PRÓDIGO (Lc 15,11)

EVOLUÇÃO DO HOMEM ATRAVÉS DE ERROS HUMANOS PARA A VERDADE DIVINA

“Um homem tinha dois filhos. O filho mais novo disse ao pai: ‘Pai, me dá a parte da herança que me cabe’. E o pai dividiu os bens entre eles. Poucos dias depois, o filho mais novo juntou o que era seu, e partiu para um lugar distante. E aí esbanjou tudo numa vida desenfreada. Quando tinha gasto tudo o que possuía, houve uma grande fome nessa região, e ele começou a passar necessidade. Então foi pedir trabalho a um homem do lugar, que o mandou para a roça, cuidar dos porcos. O rapaz queria matar a fome com a lavagem que os porcos comiam, mas nem isso lhe davam. Então, caindo em si, disse: ‘Quantos empregados do meu pai têm pão com fartura, e eu aqui, morrendo de fome… Vou me levantar, e vou encontrar meu pai, e dizer a ele: – Pai, pequei contra Deus e contra ti; já não mereço que me chamem teu filho. Trata-me como um dos teus empregados’. Então se levantou, e foi ao encontro do pai.
Quando ainda estava longe, o pai o avistou, e teve compaixão. Saiu correndo, o abraçou, e o cobriu de beijos. Então o filho disse: ‘Pai, pequei contra Deus e contra ti; já não mereço que me chamem teu filho’. Mas o pai disse aos empregados: ‘Depressa, tragam a melhor túnica para vestir meu filho. E coloquem um anel no seu dedo e sandálias nos pés. Peguem o novilho gordo e o matem. Vamos fazer um banquete. Porque este meu filho estava morto, e tornou a viver; estava perdido, e foi encontrado’. E começaram a festa.
O filho mais velho estava na roça. Ao voltar, já perto de casa, ouviu música e barulho de dança. Então chamou um dos criados, e perguntou o que estava acontecendo. O criado respondeu: ‘É seu irmão que voltou. E seu pai, porque o recuperou são e salvo, matou o novilho gordo’. Então, o irmão ficou com raiva, e não queria entrar. O pai, saindo, insistia com ele. Mas ele respondeu ao pai: ‘Eu trabalho para ti há tantos anos, jamais desobedeci a qualquer ordem tua; e nunca me deste um cabrito para eu festejar com meus amigos. Quando chegou esse teu filho, que devorou teus bens com prostitutas, matas para ele o novilho gordo!’ Então o pai lhe disse: ‘Filho, você está sempre comigo, e tudo o que é meu é seu. Mas, era preciso festejar e nos alegrar, porque esse seu irmão estava morto, e tornou a viver; estava perdido, e foi encontrado’.”
[Lucas 15:11-32]

A história do Filho Pródigo é, quase sempre, apresentada exclusivamente como a parábola clássica da misericórdia de Deus para com o pecador penitente. Oradores e escritores fazem dela um poema melodramático e sentimental do amor de um Pai que recebe de braços abertos um filho ingrato que, finalmente, se arrepende dos seus desvarios e regressa à casa paterna. Esse pai misericordioso é Deus, e o filho pródigo é qualquer pecador que se converte.
Não é intenção nossa excluir totalmente essa interpretação comovente.
Entretanto, à luz do texto original do primeiro século, não cremos que seja esta a quintessência, o alfa e ômega, da história narrada por Jesus. Por entre as linhas aparece algo infinitamente mais profundo e sublime, mais cósmico e ontológico, do que esse drama do amor paterno e da humildade filial.
A história do filho pródigo – que, no Evangelho, não é chamada parábola – é o drama da evolução ascensional do homem e a epopéia multimilenar da própria humanidade. Podemos até afirmar que, nessa narrativa, atingiu o espírito do Nazareno as mais excelsas culminâncias da sua visão cósmica sobre o homem individual e sobre a humanidade universal.
A fim de compreendermos devidamente o poema cósmico do filho pródigo, devemos, acima de tudo, remontar ao texto grego do primeiro século, nem sempre fielmente reproduzido em nossas traduções.
No texto grego original de Lucas – o único evangelista que refere o fato e que escreveu diretamente em língua grega – lemos o seguinte: “Um pai tinha dois filhos. Disse-lhe o mais novo: Pai, concede-me a parte da natureza que me convém”.
A vulgata latina traduz: “Dá-me a porção da substancia que me pertence”. Substância, em latim, pode significar “aquilo que subestá”, que subjaz à minha vida, que é a minha natureza humana de jovem. Mas os tradutores entendem, geralmente, por substancia o dinheiro.
O texto original grego é bem claro quando diz: “A parte da minha natureza (ousia, do verbo einai, que significa “ser”) que me convém (epibállon)”.
Que é que o filho mais novo, talvez de 15 anos, pede ao pai?
Muitos pensam que ele tenha pedido a parte dos bens materiais a que julgava ter direito, e o pai teria distribuído entre os dois filhos os bens da família, na medida do direito de cada um. Mas, teria um rapaz o direito de pedir isto ao pai? E, se assim acontecera, como se entende que, após o regresso do filho pródigo, o filho mais velho diz ao pai que nunca recebeu nada dele? Se houvesse partilha dos bens, teria o filho mais velho recebido a sua parte, e não se poderia queixar.
O texto grego não se refere a partilha dos bens, fala da parte da natureza (ousia) que ao jovem convém. Isto é, o jovem reclama o direito da sua juventude, insiste na sua liberdade pessoal de jovem independente, faz valer o direito de não mais ser criança dependente, mas adolescente autônomo. Pede um modo de vida conveniente (epibállon) à sua natureza de jovem.
O pai reconhece em silencio, essa conveniência; não protesta, não dissuade o jovem com nenhuma palavra; reconhece que ele deve iniciar a fase da sua adolescência. Também não aparece nenhuma mãe chorando e dissuadindo o filho de gozar os direitos da sua mocidade independente.
Em silencio, “o pai dividiu entre eles a vida” (bios). A palavra grega “bios” quer dizer “vida”, onde a Vulgata Latina repete a mesma palavra “substancia”.
O pai dividiu a vida (bios) entre os dois filhos: o mais velho continua na sua vida dependente, o mais novo inicia uma vida independente. Ou seja: o filho mais novo desperta para o segundo estágio da sua evolução hominal, deixa de ser criança inexperiente, e passa a ser um jovem experiente da sua ego-personalidade – ao passo que seu irmão mais velho continua estagnado no plano do seu infra-ego inexperiente; não comeu ainda do “fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal”, como diria Moisés.
Com o despertar da personalidade entra o jovem na fase da liberdade. O livre-arbítrio recém-despertado, manifesta-se primeiro em forma negativa, porquanto o ego humano é essencialmente centrífugo, separatista, dispersivo, anticósmico.
E durante muito tempo continua a ego-personalidade a viver exclusivamente nessa dimensão da egoidade hipertrofiada, esbanjando todas as suas potencias numa vida dissoluta, como é invariavelmente a vida com 100% de ego-consciencia e 0% de Eu-consciencia.
E, como toda a culpa livremente cometida gera sofrimentos necessariamente subseqüentes, no ponto culminante das maldades aparecem os males.
O jovem começa a sofrer as inevitáveis conseqüências das suas culpas. Sofre, sofre, sofre…
Mas o sofrimento não o levou, logo de início, à redenção. O jovem sofredor culpado procura libertar-se dos males sem se redimir da maldade; associa-se a um pecador inveterado na maldade e dele espera libertação dos seus males. O jovem sofredor, no auge da sua miséria, apela para um rico fazendeiro, morador naquela zona; pede-lhe serviço para poder sobreviver. Sem tardança, o velho pecador se prontifica a ajudar o jovem pecador, mandando guardar uma manada de porcos que ele tem na sua fazenda. Dá serviço ao jovem sofredor – mas não lhe dá alimento. Assim é que todo egoísta trata outro egoísta.
O jovem acabou pastor de porcos imundos. E, quando ouvia o ruidoso crepitar das vagens de alfarroba entre os dentes dos suínos; quando ele via como os animais, depois de encherem a barriga, se deitavam gostosamente no chiqueiro e dormiam tranqüilamente, enquanto o jovem, de estomago vazio, sentia o desejo de ser animal também para poder ser estupidamente feliz como eles – então despertou nele algo misterioso…
“Desejava encher sua barriga” (implere ventrem suum), não saciar-se, que é impossível ao racional, mas pelo menos “encher a barriga”, como os porcos, já que outra coisa não era possível. Desejava, pelo menos, esquecer sua insatisfação, já que não se podia satisfazer; tentava enganar, narcotizar, com gozos materiais os seus anseios espirituais.
Mas, diz o texto, ninguém lhe dava essa satisfação animalesca. Alimentos materiais não saciam fome espiritual.
Ali, no meio duma manada de animais satisfeitos, desceu a insatisfação do jovem ao mais profundo nadir da infelicidade.
E foi então que o máximo do sofrimento o levou ao início da redenção. “Ele entrou em si”, diz o texto.
Caiu em si, escrevem os maus tradutores, como se alguém pudesse cair pra cima. Entrou em si, diz o autor sacro.
Saiu das periferias do ego pecador e sofredor – entrou no centro do Eu redentor. Aconteceu ao filho pródigo a maior coisa que pode acontecer ao homem: a auto-compreensão. Que sou eu?…
E toda auto-compreensão transborda em auto-realização.
Que sou eu? Sou eu realmente um pastor de porcos? Não! Isto é a triste profissão do meu ego humano – mas não a gloriosa vocação do meu Eu divino…
Que sou eu?
Eu sou filho daquele pai bondoso. Não sou o que pareço ser externamente – sou e sempre serei o que sou internamente. Eu pareço ser escravo de um tirano egoísta, que me reduziu a pastor de porcos – mas eu sou filho livre de alguém que continua a ser meu pai.
Depois desse ingresso no Eu, e esse egresso do seu ego, veio o regresso ao Pai.
A auto-compreensão transborda infalivelmente em auto-realização.
Dizem certos tradutores que o jovem se “arrependeu”; outros chegam ao auge da absurdidade afirmando que fez “penitência”. Mas o texto inspirado do Evangelho só conhece a palavra “converteu-se” ou “transmentalizou-se”. Ultrapassou a sua velha mentalidade ego e entrou na nova consciência do Eu.
O jovem aparentemente, regressou para donde viera; na realidade, porém, esse regresso foi um super-gresso; o ponto da sua volta não coincidiu com o ponto de sua partida; não fechou simplesmente um círculo, abriu uma grande espiral, cujo termo de chegada está imensamente acima do termo de partida; o regresso superou o egresso, porque entre este e aquele aconteceu um ingresso. Entre a partida e a chegada houve uma gigantesca evolução – a jornada cósmica que vai da culpa através do sofrimento até a redenção.
Para celebrar esse grande acontecimento – a autocompreensão e auto-realização de um homem – o Evangelho recorre a tudo quanto possa simbolizar suprema alegria e solenidade: abraços, beijos, anel precioso, deslumbrante vestuário, lauto festim, músicas e bailados. É que a realização de um único homem é um fenômeno mais grandioso que todos os astros e galáxias do Universo. Deus creou todas as grandezas do cosmos – mas um único homem plenamente realizado é um Universo de creatividade acima de todas as creaturidades…
Quando se estava celebrando essa grande harmonia, aparece uma aguda dissonância: o filho mais velho, que estagnara na sua evolução e continuara a marcar passo na inexperiência, revelou-se incapaz de compreender a linha ascensional evolutiva de seu irmão, que culminou em suprema verticalidade. Nem aceita a palavra “teu irmão”, mas substitui-a por “teu filho”. De fato, o jovem realizado não era mais irmão dele; não havia nenhuma afinidade espiritual entre eles; ele era apenas “teu filho”, um filho de Deus, sem afinidade com outros filhos de Deus. O filho mais velho se queixa de nunca ter sido recompensado por sua obediência de muitos anos, ao passo que o outro, auto-realizado, nada sabe de recompensa, de espírito mercenário. Quem encontrou seu verdadeiro ser nada mais sabe do ilusório ter. Quem realizou o seu ser só conhece amor, e nada sabe de recompensa.
O poema do filho pródigo marca o zênite da genialidade do Nazareno, quando considerado à luz do drama cósmico da auto-realização do homem e da evolução multimilenar da humanidade.
O filho mais velho representa um ser humano que, longe de atingir as alturas da individualidade do Eu divino, nem sequer despertara para a personalidade do seu ego humano. E quem não tem consciência do seu ego não é possuidor de nada, como os seres da natureza, que nada sabem de posse ou possessividade.
Por isso, diz muito bem o Pai, que simboliza Deus. “Tudo que é meu é teu”. Tudo que é de Deus é também do mundo infra-humano – mineral, vegetal, animal – mas esse mundo nada sabe de “meu”. O infra-ego não possui nada, nem sequer um “cabrito”. A consciência do “meu” é um corolário do pequeno “eu” personal, ou ego.
O filho mais novo havia chegado à ego-consciência personal e a tinha superado, atingindo as alturas da Eu-consciência cósmica.
O hino místico “Exultet”, que se canta anualmente na véspera ou manhã da Páscoa, exclama: “O Felix culpa! O vere necessarium Adae peccatum quod talem et tantum meruisti Redemptorem!” (Ó culpa feliz! Ó pecado de Adão realmente necessário, que tal e tão grande Redentor mereceste).
Poderá haver culpa feliz? Haverá pecado necessário?
Em face da teologia analítica, isto é blasfemo – mas à luz da visão da mística intuitiva, isto é sublime. Culpa e pecado simbolizam o estágio evolutivo do homem através do ego em demanda do Eu. A nossa humanidade da ego-personalidade já está no plano horizontal da “culpa feliz” e do “pecado necessário”; falta-lhe superar esse plano e atingir a plenitude vertical da sua redenção.
Após o sub-ego, a Kundalini, enrolada e dormente, acordará como ego rastejante no plano horizontal, “comendo do pó da terra” – no super-ego, ou Eu, Kundalini se ergue à plenitude vertical da sua auto-realização.
A história do filho pródigo encerra uma metafísica de infinita profundidade e uma mística de inaudita sublimidade.

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2 – BEM-AVENTURADOS OS TRISTES, PORQUE ELES SERÃO CONSOLADOS

Por Huberto Rohden

Quem são esses tristes?
O grego diz “penthountes” que o latim traduziu por “qui lugent” os que estão de luto.
Evidentemente, essa tristeza, esse luto se referem ao ego humano; só ele pode estar triste ou de luto. É experiência geral que, no princípio, o nosso ego fica triste, chora e se veste de luto, quando o Eu divino em nós nasce, porque este não pode nascer sem que aquele morra de algum modo.
É linguagem geral de todos os Mestres espirituais que algo no homem deve morrer para que algo possa nascer. Não há nascimento sem morte. Paulo de Tarso afirma que ele (seu ego) morre todos os dias, para que seu Eu, o seu Cristo interno, possa nascer e viver.
E o próprio Cristo diz: “Se o grão de trigo não morrer ficará estéril, mas, se morrer, produzirá muito fruto”.
Morte e vida são os dois pólos sobre os quais gira toda a existência humana.
Se o ego, convidado a morrer, soubesse que ele não vai morrer realmente, mas mudar de vida e de vivência, não se entristeceria com essa quase-morte. Mas o ego não sabe, por ora, dessa outra espécie de vivência em que vai entrar, e por isto fica triste, chora e se veste de luto. O que o ego tem de mais caro e querido é a sua idolatrada egoidade, tão antiga como a própria humanidade, milhões de anos. E essa egoidade multimilenar na raça humana, tem também alguns decênios na pessoa individual de cada homem. E agora, um Mestre carinhosamente cruel convida esse idolatrado ego a morrer…
É perfeitamente natural, que o ego, se aceitar o convite mortífero, se revista de luto e tristeza. Segue atrás do negro ataúde do seu ego morto, baixa o ego-cadáver ao túmulo, deita umas pasadas de terra fria sobre o esquife, derrama amargas lágrimas sobre os restos mortais do seu ídolo morto e sente-se todo em chaga viva.
Que coisa sobrou ao homem-ego depois que sepultou o seu único ídolo sobre a face da terra?
Por algum tempo, talvez por anos a fio, a vida desse homem não tem mais encantos… Em vão desabrocham flores à beira do caminho… Em vão brilham as estrelas no firmamento noturno da sua vida… A treva é espessa, e as estrelas são longínquas… Em vão procuram os amigos consolar esse morto-vivo… Ele perdeu tudo – e ainda não encontrou nada… A alvorada de uma vida nova não amanheceu ainda para além do ocaso da vida velha que se foi… O crepe escuro do negro ataúde não permite ainda vislumbrar a gaze branca de um berço novo…
E o Mestre tem a coragem de dizer que é feliz o homem que chora sobre o túmulo do seu ego morto… Pode não ser feliz por causa desse luto – mas pode ser feliz a despeito dele. Pode ser feliz por causa de algo que vem depois dessa morte e desse luto – se é que esse homem suspeita ou adivinha esse algo que vem depois.
Aos poucos, percebe esse enlutado que as suas alegrias antigas eram algo profano e triste, e que sua tristeza de agora tem um discreto sabor de alegria, não dessa alegria ruidosa que os profanos chamam alegria, mas, de algo que tem sabor de uma tristeza superficial e duma alegria profunda.
Mas essa alegria do enlutado está numa outra dimensão, está no misterioso anonimato da felicidade. Essa felicidade anônima é tão sagrada que nada tem que ver com as chamadas alegrias dos profanos. É como o misterioso cintilar das estrelas da meia-noite, mais adivinhadas do que conhecidas.
A alegria que o ego enlutado sente é tão sagrada que o homem não ousa falar dela aos seus antigos companheiros ainda não mortos, com medo duma possível profanação ou decepção.
Por isto, esse ego enlutado prefere viver a sós, na sua doce amargura, na sua amarga doçura. Se tiver a sorte de encontrar um sócio de luto, fala com ele a meia voz sobre sua sagrada tristeza, medindo as palavras cautelosamente.
Verifica aos poucos que, por nada deste mundo, trocaria sua tristeza por nenhuma das chamadas alegrias dos profanos. Tem pena dos alegres por não gozarem a querida tristeza de que ele goza.
Um belo dia – ou numa noite feliz – descobre ele que a sua tristeza é apenas a sombra projetada por uma luz misteriosa que nele está e cuja presença ele ignorava. Por amor a essa luz ama também as suas sombras e verifica que é uma sombra luminosa, espécie de sol da meia-noite que ilumina as regiões nórdicas do globo terrestre.
E quando um antigo companheiro de profanidade o convida para aquelas outras “alegrias” repletas de ruídos, esse homem prefere a sua doce amargura a todas as doces doçuras dos inexperientes desse novo mundo que nele despontou.
Uma gotinha dessa felicidade anônima lhe vale mais que toneladas daquele bagaço profano que outrora ele chamava de gozo e prazer.
Esse felizardo enlutado compreende que a “consolação” de que o Nazareno fala não é algo que venha depois da tristeza, mas que é a quintessência dessa mesma tristeza, a alma daquilo que aos inexperientes parece ser tristeza.
Verifica que o Reino dos Céus dessa consolação não é algo como recompensa por essa tristeza, mas é esta própria tristeza vista através de outro prisma, contemplada duma outra perspectiva e dimensão.
Esse homem não espera trocar a sua tristeza por alguma consolação, espera apenas conservar para sempre a sua clarividência e contemplar para sempre a Realidade do Seu Eu verdadeiro para além de todas as facticidades do seu ego ilusório.
Compreendeu, finalmente, que a felicidade não é algo que o homem receba de fora, mas que é ele mesmo essa felicidade, quando conscientiza a sua realidade divina de dentro.
O milionário da felicidade interior não necessita de correr freneticamente no encalço das pequenas moedas dos gozos externos, que os profanos chamam felicidade. Pode abrir mão desses pobres prazeres – e assim ser considerado como triste aos olhos dos sonhadores de sonhos e caçadores de sombras. Quem goza de uma felicidade profunda pode prescindir de gozos superficiais.
A verdadeira felicidade está numa outra dimensão, ignorada dos pobres gozadores. E quando alguém goza de uma profunda felicidade vinda de dentro da alma, pode até encontrar gozo nas pequeninas coisas de fora; não necessita de estímulos violentos para gozar; uma modesta florzinha à beira da estrada; o sorriso de uma criança; o gorgeio de um passarinho; o murmúrio de uma fonte; a fosforescência de um vaga-lume; um nascer ou pôr do sol; o silêncio da floresta ou o ribombar do trovão – tudo dá gozo e prazer a quem encontrou dentro de si a fonte de uma felicidade perene. Os gozos dos profanos, sem base na felicidade interior, sofrem de um mal intrínseco: necessitam de estímulos cada vez mais violentos para serem ainda sentidos e gozados. E, por fim, a possibilidade de gozar fica tão embotada que acaba em total incapacidade de gozar ainda. O próprio gozo progressivamente intensificado produz, por fim, a incapacidade de gozo. O gozo atrofia a gozabilidade – e então o infeliz gozador está maduro para o hospício, para o hospital ou para o cemitério – ou então para um inferno em plena vida.
Toda a física acaba fatalmente em fastio se não tiver um fundo de metafísica.
O felizardo que não baseia a sua felicidade em gozos externos, mas usa esses como simples condimentos e acessórios, pode gozar sempre sem fastio nem náuseas de super-saturação. Pode parecer triste aos olhos dos inexperientes, mas é um homem profundamente feliz dentro de si mesmo.

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