Nikolai Berdiaev – O Eu, a solidão e a sociedade
CAPÍTULO II
O EU, O VOCÊ, O NÓS E O ISSO;
O EU E O OBJETO;
A COMUNICAÇÃO DAS CONSCIÊNCIAS.
Um filósofo religioso, judeu, Martin Buber, num livro notável, Ich und Du, (Eu e você), estabelece uma distinção fundamental entre Ichsein, Dusein e Essein, o ‘eu’, o ‘você’ e o ‘isso’. A relação primária entre o ‘eu’ e o ‘você’ é, para ele, a relação entre o homem e Deus. Essa relação é dialógica, ou dialética. O ‘eu’ e o ‘você’ estão em presença um do outro, face a face. O ‘você’ não é um objeto, não é uma coisa para o ‘eu’. Quando ele se transforma em objeto, ele se torna Essein, isso. Podemos dizer também, misturando minha terminologia com a de Buber, que o Essein, ‘isso’, é o resultado da objetificação. Tudo o que é objetificado é Essein, mesmo Deus, objetificado, se torna Essein. O ‘você’ desaparece e já não há encontro possível, não mais face a face. O sujeito na terceira pessoa, ‘ele’, se não for o ‘você’, se torna ‘isso’. Para mim, o ‘você’ jamais pode ser um objeto. Mas tudo é susceptível de se tornar objeto segundo um processo que podemos assistir na vida religiosa. O objeto é ‘isso’, o Es de Buber. Na medida de sua objetificação, a natureza e a sociedade se transformam para nós em ‘isso’; mas a partir do momento em que encontramos um ‘você’ na natureza, o mundo objetivo se evanesce e o mundo da existência se revela a nós. Buber pensa acertadamente que oo ‘eu’ não existe fora de suas relações com o outro, na medida em que esse outro é um ‘você’; mas, para ele, a relação entre o ‘eu’ e o ‘você’ é unicamente aquela do homem para com Deus, aquela que é tratada na Bíblia. A relação entre as consciências humanas, a do ‘eu’ e do ‘você’, a relação entre dois homens, a que envolve a multiplicidade humana, não é estudada por ele. ele não se coloca o problema da metafísica social humana, o problema do ‘nós’.
Pois não são apenas o ‘eu’, o ‘você’ e o ‘isso’ que existem, também o ‘nós’ existe. O ‘nós’ pode se transformar em ‘isso’, como acontece na socialização (que é uma objetificação), como acontece por exemplo no ecumenismo da Igreja, considerada enquanto instituição social. O ‘nós’ objetificado consiste na coletividade social, que é dada a cada um de nós desde fora; mas ele existe também de outra maneira, como comunidade e comunhão de pessoas, na qual cada um é um ‘você’, e não um ‘isso’. A sociedade é o ‘isso’, ela não é um ‘nós’. Quando ela é objetificada, cada um de seus membros é um objeto dentro dela. São os vizinhos, não os próximos, os amigos, porque um amigo jamais é um objeto. Na sociedade existem nações, classes, as diversas camadas sociais, os partidos, os concidadãos, os camaradas, os superiores, mas nunca um ‘eu’, nem um ‘você’; e o ‘nós’ só se encontra aí sob uma forma socializada, descolada da pessoa concreta.
Existe um outro modo de comunhão das consciências: sua participação no ‘nós’. O ‘nós’, para o ‘eu’, não é ‘isso’, o objeto, ele não constitui um dado exterior. O ‘nós’ é um conteúdo qualitativo imanente ao ‘eu’, pois todo ‘eu’ envolve sempre uma relação, não apenas com o ‘você’, mas também com a multiplicidade humana. É sobre essa relação que se fundamenta a ideia de Igreja, tomada em sua pureza ontológica, da Igreja não objetificada ou socializada, pertencente à ordem ontológica, pois quando acontece de a Igreja transformar a si própria em objeto, num ‘isso’, o ‘nós’ já não pode conter nada mais de existencial.
Com efeito, tanto quanto no ‘eu’, a existência se revela no ‘você’ e no ‘nós’; é apenas no objeto que ela jamais se revela. Freud, apesar de sua ingenuidade filosófica, que às vezes confinava com o materialismo, distingue entre o ‘eu’ e o ‘si’. Existe no homem um fundo impessoal, o ‘si’, que pode sobrepujar o ‘eu’.
O Essein de Buber em parte corresponde ao das Man de Heidegger, a terceira pessoa determinada. O Essein coincide também com aquilo que eu chamo “mundo da objetificação”, no qual, por sinal, não se resume todo o problema social. O mundo do Dasein, do ser-situado, de Heidegger, é o Mitwelt, o mundo da coexistência com outrem. Mas Heidegger não coloca, nem tampouco aprofunda o problema da sociologia metafísica. Será mais em Karl Jaspers que encontraremos essa questão tratada.
Se não apenas o ‘eu’ e o ‘você’, mas também o ‘nós’, são imediatamente dados, não é menos verdade que é o ‘eu’ que é primitivo; mas eu não posso dizer ‘eu’ em anunciar e colocar, por esse mesmo ato, o ‘você’ e o ‘nós’. Entendida assim, a sociabilidade consiste numa propriedade do ‘eu’, constitutiva de sua própria existência íntima. É preciso distinguir radicalmente entre o ‘você’ e o ‘nós’, de um lado, e o ‘não-eu’, de outro, pois, enquanto que o ‘não-eu’ se confunde com a objetificação, o ‘você’ e o ‘nós’ são existenciais. O ‘você’ é um outro ‘eu’, e o ‘nós’ é o próprio conteúdo do ‘eu’. Quanto ao ‘não-eu’, ele é sempre hostil ao ‘eu’, ele constitui sempre uma oposição, um obstáculo ao ‘eu’. No máximo, o ‘eu’ pode enxergar no ‘não-eu’ uma metade, a outra metade do ser, embora não possa encontrar nele a multiplicidade dos demais homens, seus semelhantes, o que é evidente, porque sendo o ‘não-eu’ um objeto e não um ‘você’, nenhum ‘eu’ pode decorrer dele.
Até o presente, o problema das relações entre o ‘eu’, o ‘você’, o ‘nós’ e o ‘isso’ não foi colocada com suficiente amplidão na filosofia, que só se preocupou com a questão da realidade do ‘eu’ de outrem e da maneira como ele é conhecido. Será que nos é dada essa realidade do ‘eu’ de outrem, será que a conhecemos? Segundo a teoria antiga, não perceberíamos mais do que o corpo do outro, e seríamos obrigados a inferir, por analogia, a vida de sua alma. Essa teoria é completamente errada e deve ser imediatamente rejeitada. De fato, conhecemos muito mal o corpo do outro, ignoramos por completo o que se passa ali, e não percebemos senão sua superfície, enquanto que a vida psíquica do outro nos é, ao contrário, melhor conhecida, na medida em que a captamos, que nela penetramos de maneira imediata. A intuição da vida mental de um outro ‘eu’ não pode ser negada, porque a intuição não poderia se aplicar a um outro ser ou uma outra existência considerados como objetos, e ela só pode ser possível na medida em que tomamos esse ser ou essa existência como sendo um ‘eu’, como sendo ‘você’. Pois diante de um objeto eu permaneço sempre só, sem poder sair de mim mesmo; ao contrário, na presença de um outro ‘eu’ que seja para mim um ‘você’, eu saio de minha solidão e alcanço uma comunhão. A intuição da vida espiritual de um outro ‘eu’ é uma comunhão com esse ‘eu’.
O fato de percebermos o rosto de outrem, e expressão de seus olhos, frequentemente nos entrega o segredo de sua alma. Os olhos, os gestos, as palavras nos fazem conhecer a alma de alguém, melhor do que seu corpo. Conhecemos de fato, e percebemos a vida de outrem, não apenas com o auxílio daquilo que ele nos revela, mas também daquilo que ele nos vela. Esse método para conhecer a outrem por suas reticências chegou a ser objeto de muito abuso em nosso tempo, a partir da descoberta do inconsciente. Sem dúvida, a psicanálise freudiana atesta a possibilidade de conhecer a vida psíquica e não a vida fisiológica de outrem, pois exatamente de seu ponto de vista a libido, a sexualidade, provém, não da vida orgânica, mas da vida espiritual. Também não é menos errado imaginar que o método analítico é o único capaz de nos ensinar profundamente a respeito da vida interior de alguém, em outros termos, a respeito de seu verdadeiro ‘eu’. Quando pretendemos fazer do ‘eu’ um objeto de conhecimento, ele se esconde fundo. Ao contrário, existe uma apreensão imediata da alma do outro; mas ela é afetiva, simpática, erótica, vale dizer: ela é da ordem do amor. Se ela não perfura o mistério do ‘eu’ de outrem, que é impenetrável, não devemos concluir daí, como se faz tantas vezes a partir da realidade desse mistério, a impossibilidade total de conhecer seja lá o que for da alma de outrem.
Até hoje, não se prestou muita atenção no problema da comunicação entre consciências. Esse é um dos problemas fundamentais da filosofia. É indispensável distinguir entre comunicação e participação. A participação é real, ela consiste na penetração na realidade primeira. Ao contrário, a comunicação, para a maior parte, não passa de simbólica, ela pressupõe a simbolização, vale dizer, o emprego de signos exteriores capazes de traduzir para fora a realidade interna. O simbolismo próprio às comunicações é precisamente aquilo que, a partir da ordem interior da existência, transparece no mundo objetivo, vale dizer, desunido, desfeito, desmembrado. Nossas artes estão cheias de simbolismo, assim como nosso conhecimento: ao mesmo tempo em que ela trai um estado de desunião, ela estabelece comunicações. Numa certa medida, é graças aos signos e aos símbolos, que conhecemos a vida interior dos outros; mas essas comunicações que se estabelecem na vida humana implicam sempre a desunião, elas pressupõem que não é possível encontrar saída para o mistério da existência; isso se deve ao fato de que elas não possuem mais do que um valor simbólico.
Esse é o caso dos costumes, dos hábitos, da imitação, da polidez, da amabilidade. Todas as comunicações que constituem a vida do Estado possuem esse caráter, e elas não pressupõem a menor comunhão entre as pessoas. Em particular, o caráter convencional é próprio a todos os signos que servem às relações pecuniárias, e nas quais a objetificação alcança sua forma mais extrema. Mas o ‘eu’ não se satisfaz em comunicar com os outros apenas por meio da sociedade ou do Estado, pelas instituições, ou seja, por meio de signos convencionais. Ele aspira a algo mais do que uma comunicação, ele deseja uma comunhão com os outros, o que ele quer é deixar seu lugar para aceder a uma existência autêntica. As comunicações convencionais não permitem deixar o mundo dos objetos, elas se mantém em relação com eles; por sua vez, o impulso que nos leva à comunhão conduz, para além da objetificação, à existência real. O simbolismo das comunicações está sempre em proporção aos diferentes graus de objetificação.
A comunhão comporta a reciprocidade: não é possível haver comunhão unilateral; no amor não partilhado, não existe comunhão, pois na comunhão o ‘eu’ e o ‘você’ são ambos ativos, enquanto que com o objeto não se pode exigir nenhuma reciprocidade, porque com ele não é possível estabelecer mais do que uma comunicação simbólica. O ‘eu’ não pode comungar senão com um ‘eu’ que seja, para ele, um ‘você’, e um ‘você’ ativo, para que a comunicação seja bilateral, vale dizer, sobre o plano, não da objetividade, da objetificação, mas da existência. Na medida em que o ‘eu’ não está ligado senão ao objeto, ele permanece só, mesmo na comunicação, e a solidão não pode ser suplantada senão pela comunicação entre pessoas, entre o ‘eu’ e o ‘você’, no interior, não da sociedade objetificada, mas do ‘nós’.
A consciência, por sua própria natureza, é social, ela pressupõe que os demais seres humanos existem e que eles estão em relação recíproca, ela implica irmãos em humanidade. Mas é frequente acontecer que ela contrarie a comunhão, deixando o homem em sua solidão, por ter sido socializada, vale dizer, adaptada às comunicações simbólicas que constituem o reino da sociedade, ao invés de se voltar para a realidade da comunhão na existência autêntica. Ao ser socializada, a consciência é entregue à vida coletiva do dia-a-dia. No êxtase místico, como caem todas as barreiras da consciência, desaparece todo obstáculo à união. O homem chega a aspirar ao apagamento de sua consciência a fim de saciar sua sede de comunhão. Na originalidade criativa, pessoal, assim como no êxtase suprapessoal, dissipam-se o cotidiano social, com suas barreiras e normas. Não é que o pensamento pessoal, original, próximo de sua fonte primária, seja a negação da comunidade e da comunhão; ele não nega senão a sujeição do pensamento ao cotidiano social, à sociedade transformada em objeto. O que o pensamento pessoal condena não é a comunidade, mas a generalidade. Jaspers professa com razão que não existe um ‘eu’ sem que haja comunicação com ‘outro’, sem disputa dialética. A partir do momento em que o mundo se degrada na condição de sujeito puro do conhecimento, ele já está objetificado, e o que ele pode obter daí por diante já não será uma comunidade interior, mas apenas uma comunicação, restritiva e fundamentada no geral.
Uma vez que a conversão de seja lá o que for em objeto constitui uma evidente racionalização, será na vida afetiva que o ‘eu’ irá melhor se revelar. Ela comporta uma objetificação menor do conhecimento, desde que as emoções não tenham sido socializadas de modo a mascarar a vida interior do ‘eu’. Essas dificuldades não impedem que o conhecimento fundado na comunhão, por meio do qual um ‘eu’ penetra na intimidade de um outro ‘eu’, seja um conhecimento emocional. Seria um erro crer que a comunhão, vitoriosa sobre a solidão, só seja possível de homem para homem, que ela seja reservada à amizade humana. Ela também pode penetrar no reino animal, e até no reino vegetal ou mineral, que possuem também sua existência interna. Podemos, como São Francisco de Assis, comungar com a natureza, com os oceanos, as montanhas, as florestas, os campos, os rios. O exemplo mais notável desse tipo de comunhão afetiva nos é fornecido pelas relações do homem com os cães, verdadeiros amigos do homem. realiza-se uma reconciliação do homem com a natureza alienada e objetificada, na qual o homem reencontra, não mais um objeto, mas um sujeito, um amigo. As relações entre o homem e o cão possuem um valor metafísico, pois, perfurando o objeto, atinge-se a existência autêntica.
Sabemos, a partir da teoria de Freud sobre o narcisismo, sobre a qual já dissemos colocar um problema dos mais profundos, que o ‘eu’ se torna aí objeto da libido. O narcisismo consiste num desdobramento do ‘eu’, e é por isso que o ‘eu’ se torna seu próprio objeto, torna-se ele mesmo uma parte do mundo objetificado. O narcisismo não pode ser superado senão com a condição de que o ‘eu’ busque seu próprio reflexo, não mais em si, mas em algum outro ‘eu’. Esse fenômeno do narcisismo se encontra igualmente no domínio do conhecimento.
Para Freud, o instinto mais profundo é o da morte; ele pensa assim, porque ignora o mistério da comunhão, da saída do ‘eu’ no ‘você’ e no ‘nós’. O instinto sexual, como tal, não conduz à comunhão e à penetração num outro ‘eu’. Existe nele um elemento demoníaco de destrutivo. Ao contrário, é ele que nos lança no mundo objetificado e nos acorrenta a ele. é por isso que, ao lado do instinto sexual, aparece para Freud o instinto da morte, que não conhecia um terceiro que pudesse ser mais profundo.
A evasão para fora do cotidiano social, que desune e prende, por meio da união extática no suprapessoal, traz uma solução ao problema da solidão pela abolição e a negação da personalidade. A máscara nos cultos antigos, por exemplo no culto dionisíaco, simbolizava a vitória sobre a solidão, e a participação no divino. mas o problema da comunicação de ‘eu’ para ‘eu’, de pessoa a pessoa, não deixa de subsistir. Ele não pode ser resolvido a não ser pelo amor, amor erótico e amor amistoso, pois o amor está indissoluvelmente ligado à pessoa e constitui sempre uma saída do ‘eu’ para fora de si em direção a um outro ‘eu’, e não em direção ao impessoal, ao ‘si’ coletivo. Mas o ‘eu’ não é ainda a pessoa. É preciso que ele se torne pessoa: e para isso concorre a comunhão com o ‘você’ e o ‘nós’. A pessoa se afirma na comunhão em que cada qual sai de si e vai na direção do outro.
Pois a reserva interior do ‘eu’ só faz expressar seu isolamento, sua solidão. É uma maneira dele se defender contra o mundo objetificado e socializado. O ‘eu’ não pede mais do que se abrir para o ‘você’, mas o que ele encontra, ao invés desse ‘você’, são coisas. E no entanto, se a solidão constitui uma fase no desenvolvimento pelo qual a pessoa toma consciência de si esma, ela deve ser superada; e, como ela não pode sê-lo por meio da objetificação que só gera um mundo impessoal, somos assim levados ao problema da pessoa, que será examinado mais adiante.
FONTE: BLOG CAMINHO DE ORAÇÃO
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