Alexander Schmemann – Pela Vida do Mundo – Capítulo VII

CAPÍTULO VII
SOMOS AS TESTEMUNHAS
DESSAS COISAS

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Não há necessidade de repetir aquilo que já foi dito tantas vezes e tão bem nos últimos anos: que a Igreja é missão e que ser missão constitui sua verdadeira essência, sua verdadeira vida. Mas é preciso, por outro lado, lembrar que algumas “dimensões” da missão cristã foram várias vezes esquecidas desde que a Igreja aceitou seu estabelecimento no mundo, sua respeitável posição como “religião do mundo”.
Mas comecemos com algumas palavras a respeito de nossa atual situação missionária. Quaisquer que tenham sido as realizações da missão cristã no passado, hoje devemos, com toda honestidade, admitir um duplo fracasso: fracassamos em obter qualquer “vitória” substancial sobre as demais grandes religiões do mundo, e fracassamos em superar o crescimento e o prevalecimento do secularismo em nossa cultura. Em relação às demais religiões, o Cristianismo continua sendo simplesmente uma a mais, e certamente foi-se o tempo em que os cristãos poderiam considerá-las como “primitivas” e destinadas a desaparecer diante da supostamente evidente “superioridade” do Cristianismo. Não apenas elas não desapareceram, como hoje mostram uma notável vitalidade, e “proselitizam” mesmo dentro das autodenominadas sociedades “cristãs”. Quanto ao secularismo, nada demonstra melhor nossa inabilidade em competir com ele quanto a confusão e a divisão que ele provoca entre os próprios cristãos: a total e violenta rejeição do secularismo entre todas as variedades de “fundamentalismo” cristão colide com sua igualmente entusiástica aceitação por numerosos intérpretes cristãos do “mundo moderno” e do “homem moderno”. Daí as intermináveis reavaliações, por parte dos cristãos, de seus métodos missionários, de seu lugar e sua função no mundo.
Aqui podemos discernir duas grandes tendências. Em primeiro lugar, existe a perspectiva religiosa de que falamos no primeiro capítulo. O objeto da missão é pensado como sendo a propagação de uma religião, considerada como uma necessidade essencial do homem. O que é significativo aqui é que mesmo as igrejas mais tradicionais, confessionais e “exclusivas” igrejas aceitam a ideia de um modus vivendi com outras religiões, com todos os tipos de “diálogos” e “aproximações”. Existe – esse é o pressuposto – uma religião básica, alguns “valores espirituais” e “religiosos”, e esses devem ser defendidos contra o ateísmo, o materialismo e outras formas de irreligião. Não apenas os cristãos “liberais” e “não denominacionais”, como também os conservadores, estão prontos a desistir da ideia de uma missão pregadora da única e verdadeira religião, que, como tal, se opõe a todas as outras religiões, e a substituí-la por uma frente comum contra o inimigo: o secularismo. Uma vez que todas as religiões estão ameaçadas por seu crescimento vitorioso, uma vez que a religião e os “valores espirituais” estão em declínio, os homens religiosos de todas as crenças devem esquecer suas diferenças e se unir para defender esses valores.
Mas quais são esses “valores religiosos básicos”? Se os analisarmos honestamente, não encontraremos um sequer que seja radicalmente diferente do que aquilo que o secularismo também proclama oferecer ao homem. Ética? Busca pela verdade? Fraternidade humana, solidariedade? Justiça? Abnegação? Com toda honestidade, existe mais interesse passional por todos esses “valores” dentre os “secularistas” do que nos corpos religiosos organizados, que com tanta facilidade se amoldam ao minimalismo ético, à indiferença intelectual, às superstições, ao tradicionalismo morto. O que resta é a famosa “ansiedade” e os inúmeros “problemas pessoais” com os quais a religião declara ser supremamente competente. Mas mesmo aqui, não é significativo – e já falamos a esse respeito – que, ao lidar com esse assuntos a religião é obrigada a emprestar todo o arsenal terminológico das diversas “terapêuticas” seculares? Não são, por acaso, os “valores” apresentados nos manuais de felicidade conjugal, tanto religiosos como seculares, idênticos de fato, em sua linguagem, imagens e técnicas?
Parece paradoxal, mas a religião básica que tem sido pregada e aceita como o único meio de combater o secularismo é, na verdade, uma rendição ao secularismo. Essa rendição pode acontecer – como de fato acontece – em todas as confissões cristãs, embora com um “colorido” diferente conforme seja uma “igreja comunitária” suburbana não denominacional ou uma paróquia litúrgica, confessional, hierárquica e tradicional. Pois a rendição consiste não em desistir dos credos, tradições, símbolos e costumes (coisas pelas quais o homem secular, cansado de seu ofício funcional, mostra às vezes grande atração), mas em aceitar a própria função da religião em termos de promoção do valor secular de ajuda, seja a ajuda na construção do caráter, para a paz mental, ou para a segurança de uma salvação eterna. É nessa “chave” que se dá a pregação da religião, e na qual ela é hoje aceita por milhões e milhões de crentes “medianos”. E é verdadeiramente notável quão pouca diferença existe na autoconsciência religiosa dos membros de confissões cujos dogmas parecem estar em radical oposição umas com as outras. Pois mesmo que um homem mude de religião, isso se dá normalmente porque ele encontra uma oferta maior de “ajuda” – não uma verdade maior. Enquanto os líderes religiosos discutem o ecumenismo no topo, existe na base uma ecumenismo de fato nessa “religião básica”. É aqui, nessa “chave” que encontramos a fonte do aparente sucesso das religiões em algumas partes do mundo, como na América do Norte, onde o “boom” religioso se deve principalmente à secularização da religião. Essa é também a fonte do declínio da religião nas partes do mundo onde o homem já não tem tempos para uma análise constante de suas ansiedades e onde o “secularismo” ainda mantém a grande promessa de pão e liberdade.
Mas se isso é religião, seu declínio continuará, seja tomando a forma de um abandono direto da religião ou a do entendimento da religião como um apêndice de um mundo que há muito deixou de referenciar, tanto a si mesmo como a toda sua atividade, a Deus. E nesse declínio geral da religião, as “grandes religiões” não cristãs possuem ainda maiores chances de sobrevivência. Pois podemos nos perguntar em que medida algumas “tradições espirituais” não-cristãs não constituem uma “grande ajuda” do ponto de vista daquilo que o homem de hoje espera de uma religião. O Islamismo e o Budismo oferecem uma excelente “satisfação” e “ajuda” não apenas para o homem primitivo, como também para o homem sofisticado e intelectual. Não é verdade que a sabedoria e o misticismo Orientais sempre exerceram uma atração quase irresistível para as pessoas religiosas em toda parte? É de se temer que alguns aspectos “místicos” da Ortodoxia devem sua crescente popularidade no Ocidente por causa de sua fácil – embora errônea – identificação com o misticismo Oriental. Os escritos ascéticos da Filocalia fazem tremendo sucesso em alguns grupos esotéricos que são supremamente indiferentes à vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo. E as preocupações espirituais desses grupos esotéricos são, em última análise, pouco diferentes daquelas dos pregadores mais enfaticamente cristocêntricos quando falam da salvação pessoas e da “garantia da vida eterna”. Em ambos os casos o q eu se oferece é uma “dimensão espiritual” da vida que deixa intacta e inalterada a “dimensão material” – vale dizer, o próprio mundo – e os deixa intactos sem nenhum problema de consciência. Trata-se de uma questão muito séria, de fato, até que ponto, sob essa cobertura aparentemente tradicional, algumas formas da missão cristã contemporânea não estão de fato pavimentando o caminho para uma “religião mundial”, que na verdade terá pouquíssimo em comum com a fé que um dia venceu o mundo.

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A segunda tendência consiste na aceitação do secularismo, de acordo com os ideólogos de um Cristianismo não religioso”, o secularismo não é o inimigo, ele não é o fruto da perda trágica da religião pelo homem, não um pecado ou uma tragédia, mas simplesmente o mundo que “chegou ao tempo” em que o Cristianismo deve reconhecê-lo e aceitá-lo como perfeitamente normal: “A honestidade pede que reconheçamos que devemos viver num mundo como se não existisse Deus”. Esse ponto de vista foi recentemente desenvolvido em muitos livros notáveis e não há necessidade de desenvolvê-lo aqui. O que importa para nós é que essa missão é entendida aqui primariamente em termos de solidariedade humana. Um cristão é um “homem devotado aos outros”. Ele partilha incondicionalmente e por completo da vida humana dentro de uma perspectiva conferida a ele pela história de Jesus de Nazaré. A missão cristã não consiste em pregar a Cristo, mas em ser cristão na vida.
Sem dúvida, existe uma “ênfase” valiosa nessa tendência. E, antes de tudo, o secularismo deve de fato reconhecê-la como um fenômeno “cristão”, como resultado de uma revolução cristã. Ele só pode ser explicado no contexto da história que começa no encontro entre Atenas e Jerusalém. De fato, um dos mais graves erros do antissecularismo religioso está em que ele não vê que o secularismo é feito de “verdades cristãs tornadas tolices”, de verdades cristãs que “enlouqueceram”, e, ao simplesmente rejeitar o secularismo, ele está de fato rejeitando junto algumas aspirações e esperanças fundamentalmente cristãs. É verdade que é por intermédio da “secularização”, e não num encontro religioso direto com o Cristianismo, que os homens das demais “grandes religiões” podem entender determinadas dimensões do pensamento e da experiência, sem as quais o Cristianismo não pode ser “ouvido”. É verdade também que em seu desenvolvimento histórico, o Cristianismo voltou às dicotomias pré-cristãs e fundamentalmente não cristãs entre o “sagrado” e o “profano”, o espiritual e o material, etc., tendo assim estreitado e viciado sua própria mensagem.
Ainda assim, quando tudo isso é reconhecido, permanece a verdade última, em relação à qual os partidários cristãos da secularização parece ser cegos. Essa verdade é que o secularismo – precisamente devido à sua origem “cristã”, ao selo cristã indelével que carrega – constitui uma tragédia e um pecado. Ele é uma tragédia porque, tendo provado do bom vinho, o homem preferiu e ainda prefere voltar à água; tendo visto a verdadeira luz, escolheu a luz de sua própria lógica. É também característico que os profetas e pregadores do “Cristianismo secularizado” constantemente se refiram ao “homem moderno” como sendo aquele que “usa a eletricidade”, que foi moldado pela “industrialização” e pela “visão científica do mundo”. A poesia e a arte, a música e a dança não se incluem aqui. O “homem moderno” “chegou à idade” como um adulto mortalmente sério, cônscio de todos os seus sofrimentos e alienações – mas não da alegria –, do sexo – mas não do amor –, da ciência – mas não do “mistério”. Uma vez que ele sabe que “não existe o céu”, ele é incapaz de compreender a prece ao nosso Pai que está nos céus, e a afirmação de que os céus e a terra estão cheios de sua glória. Mas a tragédia é também um pecado, porque o secularismo consiste numa mentira a respeito do mundo. “Viver no mundo como se não houvesse Deus” – mas a fidelidade ao Evangelho, a toda a tradição cristã, à experiência de todos os santos e de todo o mundo da liturgia cristã exige exatamente o oposto: viver num mundo vendo todas as coisas como uma revelação de Deus, um sinal de Sua presença, a alegria de Seu advento, o chamado para a comunhão com Ele, a esperança da plenitude Nele. Desde o dia de Pentecostes existe um selo, um raio, um sinal do Espírito Santo em tudo para aqueles que acreditam em Cristo e que sabem que Ele é a vida do mundo – e que Nele o mundo, em sua totalidade, se tornou outra vez uma liturgia, uma comunhão, uma ascensão. Aceitar o secularismo como a verdade sobre o mundo é, assim, alterar a fé cristã original tão profunda e radicalmente, que é preciso que se responda à questão: estamos nós falando do mesmo Cristo?

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O único objetivo desse livro tem sido o de mostrar, ou melhor, de “assinalar” que a escolha entre essas duas reduções do Cristianismo – seja à “religião”, seja ao “secularismo” – não constitui a única escolha, e que na verdade se trata de um falso dilema. “Somos testemunhas dessas coisas…” – mas, de que coisas? Numa linguagem não muito adequada, tentamos falar a respeito disso. E estamos certos de que é na ascensão da Igreja para Cristo, na alegria do mundo futuro, na Igreja como o sacramento – o dom, início, presença, promessa, realidade, antecipação – do Reino, que está a fonte e o começo de toda a missão cristã. Somente quando retornamos da luz e da alegria da presença de Cristo podemos recuperar o mundo como um campo cheio de sentido de nossa ação cristã, que podemos ver a verdadeira realidade do mundo e então descobrir o que devemos fazer. A missão cristã está sempre nos seus começos. É hoje que sou enviado ao mundo em paz e alegria, “tendo visto a verdadeira luz”, tendo partilhado do Espírito Santo, tendo sido uma testemunha do divino Amor.
O que farei? O que deve a Igreja e cada cristão fazer nesse mundo? Qual é a nossa missão?
Não existem receitas práticas para responder a essas questões. “Tudo depende” de milhares de fatores – e, para termos certeza, todas as nossas faculdades humanas de inteligência e sabedoria, de organização e planejamento, têm que ser postas em ação. Mas – e esse é o ponto que quisemos frisar nessas páginas – “tudo depende” basicamente de que sejamos testemunhas reais da alegria e da paz do Espírito Santo, da nova vida da qual nos tornamos parte através da Igreja. A Igreja é o sacramento do Reino – não porque ela possua atos divinamente instituídos chamados de “sacramentos”, mas porque, antes de tudo, ela é a possibilidade dada ao homem de ver, no mundo e através do mundo, o “mundo do futuro”, de vê-lo e de “vivê-lo” em Cristo. Somente quando, na escuridão desse mundo, discernimos que Cristo já “preencheu todas as coisas Consigo mesmo”, é que essas coisas, quaisquer que sejam, se tornam reveladas e dadas a nós plenas de significado e beleza. Um cristão é alguém que, para onde quer que olhe, encontra Cristo e se regozija Nele. E essa alegria transforma todos os seus planos e programas humanos, todas as suas ações e decisões, transformando toda sua missão no sacramento do retorno do mundo para Aquele que é a vida desse mundo.

NOTAS:

FONTE BLOG CAMINHO DE ORAÇÃO

Alexander Schmemann – Pela Vida do Mundo – Capítulo VI

CAPÍTULO VI
DESTRUIR A MORTE COM A MORTE

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Vivemos hoje em dia numa cultura que nega a morte. Podemos constatar isso pela aparência acolhedora das agências funerárias, que buscam se parecer com as outras lojas. Lá dentro, o organizador do funeral tenta cuidar das coisas de tal modo a que ninguém se dê conta da tristeza presente; e uma sala de estar é desenhada para transformar o funeral em uma experiência na medida do possível agradável. Existe uma estranha conspiração de silêncio concernente ao franco fato da morte, e o próprio cadáver é “embelezado” para disfarçar a morte. Mas existiram no passado, e até hoje existem – mesmo dentro de nosso mundo, que tanto afirma a vida – culturas “centradas na morte”, nas quais a morte é uma das maiores e mais abarcantes preocupações, e em que a vida é concebida principalmente como uma preparação para a morte. Se para algumas pessoas a agência funerária parece espantar os pensamentos da morte, para outras mesmo certas “utilidades”, como uma cama ou uma mesa, se tornam símbolos, lembranças da morte. A cama é vista como uma imagem do sepulcro, enquanto o caixão é posto sobre a mesa.
Onde entra o Cristianismo em tudo isso? Não há dúvida, por um lado, de que o “problema da morte” é central e essencial na sua mensagem, conforme anuncia a vitória de Cristo sobre a morte, e que o Cristianismo tem sua fonte nessa vitória. Mas, por outro lado, temos a estranha sensação de que, embora essa mensagem seja certamente ouvida, ela não possui um impacto real nas atitudes humanas básicas em relação à morte. Antes, foi o Cristianismo que se “ajustou” a essas atitudes, aceitando-as como suas. Não é difícil dedicar a Deus – num suave discurso Cristão – novos edifícios e feiras mundiais, ou desfrutar – quando não, promover – as forças progressivas de afirmação da vida que campeiam em nossa “era atômica”, de modo a fazer o Cristianismo passar pela própria fonte dessa atividade frenética e centrada na vida. Igualmente fácil, ao pregar num funeral ou num retiro, é apresentar a vida como um vale de lágrimas e vaidades, e apresentar a morte como uma libertação.
Um ministro Cristão, que nisso representa toda a Igreja, deve hoje em dia utilizar-se das duas linguagens, esposando ambas as atitudes. Mas, se ele for sincero, ele deve sentir francamente eu “algo está faltando” nessas atitudes, e o que de fato falta é o próprio elemento Cristão. Pois constitui uma falsificação da mensagem Cristã, apresentar e pregar o Cristianismo como sendo essencialmente uma afirmação da vida – sem referir essa afirmação à morte de Cristo e, portanto, ao próprio fato de morte; passar em silêncio o fato de que para o Cristianismo a morte não é apenas o fim, como a própria realidade desse mundo. Mas “confortar” as pessoas e reconciliá-las com a morte, fazendo desse mundo um cenário sem sentido que serve apenas à preparação individual para a morte também implica falsificá-lo. Pois o Cristianismo proclama que Cristo morreu pela vida do mundo, e não para um “descanso eterno” em relação a ele. Essa “falsificação” faz do próprio sucesso do Cristianismo (de acordo com os dados oficiais, a construção de igrejas e as contribuições dos fiéis nunca estiveram tão em alta) uma profunda tragédia. O homem mundano quer que o ministro seja um camarada otimista, sancionando a fé num mundo progressista e otimista. E o homem religioso o vê como alguém sério, tristemente solene e que denuncia solenemente a vaidade e a futilidade do mundo. O mundo não deseja uma religião, e a religião não deseja o Cristianismo. Um rejeita a morte, outra a vida. Daí provém a imensa frustração tanto com as tendências seculares do mundo que afirma a vida, quanto da mórbida religiosidade daqueles que se opõem a ele.
A frustração perdurará enquanto os Cristãos continuarem a entender o Cristianismo como uma religião cujo propósito é o de ajudar, enquanto eles continuarem a manter uma autoconsciência utilitária típica da “velha religião”. Pois essa era, de fato, uma das principais funções das religiões: ajudar, e em especial ajudar as pessoas a morrer. Por esse motivo a religião sempre constituiu uma tentativa de explicar a morte e, ao explicá-la, reconciliar o homem com ela. Platão penou em seu Fédon para mostrar a morte como algo desejável e mesmo bom, e quantas vezes isso ecoou na história das crenças humanas, quando confrontado com a perspectiva de libertação desse mundo de mudanças e sofrimentos! Os homens se consolaram racionalizando que Deus criou a morte e que portanto ela está certa, ou que ela faz parte do padrão da vida; eles encontraram vários significados na morte, e se convenceram de que a morte é preferível a uma idade decrépita; eles formularam doutrinas sobre a imortalidade da alma – ou seja, de que, se o homem morre, pelo menos uma parte sua sobrevive. Tudo isso constituiu uma longa tentativa de retirar a terrível singularidade da experiência da morte.
Por ser uma religião, o Cristianismo teve que aceitar essa função fundamental das religiões: “justificar” a morte, para assim ajudar. Ao fazer isso, ademais, ela assimilou em maior ou menor grau as explicações clássicas sobre a morte, comuns a virtualmente todas as religiões. Pois nem a doutrina sobre a imortalidade da alma, baseada na oposição entre o espiritual e o material, nem a da morte como libertação, nem a da morte como punição, são, de fato, doutrinas Cristãs. E sua integração à visão de mundo Cristã mais corrompeu do que iluminou a teologia e a piedade Cristãs. Elas “funcionaram” enquanto o Cristianismo viveu num mundo “religioso” – vale dizer, num mundo centrado na morte. Mas elas deixaram de funcionar assim que o mundo superou essa velha religião centrada na morte e se tornou “secular”. Mas o mundo se tornou secular, não porque tenha se tornado “irreligioso”, “materialista”, “superficial”, não porque tenha “perdido sua religião” – como muitos Cristãos pensam – mas porque as velhas explicações realmente nada explicam. Em geral os Cristãos não se dão conta de que eles próprios, ou melhor, o Cristianismo, foi o principal fato de libertação da velha religião. O Cristianismo, com sua mensagem que oferece a plenitude da vida, contribuiu mais do que qualquer coisa para a libertação do homem dos temores e do pessimismo da religião. O secularismo, nesse sentido, é um fenômeno dentro do mundo Cristão, um fenômeno que seria impossível sem o Cristianismo. O secularismo rejeita o Cristianismo na medida mesma em que o Cristianismo se identifica com a “velha religião”, e tenta impingir ao mundo essas “explicações” e “doutrinas” sobre a vida e a morte que o próprio Cristianismo destruiu.
Entretanto, seria um grande erro pensar no secularismo apenas como sendo uma ausência de religião. Ele próprio é, de fato, uma religião, e como tal uma explicação da morte e uma tentativa de reconciliação em relação a ela. Ela é a religião daqueles que estão cansados de ver o mundo explicado em termos de “outro mundo”, a respeito do qual ninguém sabe nada, e a vida explicada em termos de uma “sobrevivência” sobre a qual ninguém tem a menor ideia do que seja; cansados de ver, em outras palavras, a vida receber seu “valor” em termos de morte. O secularismo é uma “explicação” da morte em termos de vida. O único mundo que conhecemos é esse mundo, a única vida que nos foi dada é essa vida – assim pensa o secularista – e depende de nós torná-la tão significativa, rica e feliz quanto possível. A vida termina na morte. Isso é desagradável, mas uma vez que é natural – uma vez que a morte é um fenômeno universal – a melhor coisa que o homem pode fazer é simplesmente aceitá-la como algo natural. Enquanto está vivo, naturalmente, ele não deve pensar a respeito, mas deve viver a vida como se a morte não existisse. A melhor maneira de esquecer a morte é se mantendo ocupado, é ser útil, é se dedicar a coisas grandes e nobres, é construir um mundo cada vez melhor. Se Deus existe (e um grande número de secularistas acredita firmemente em Deus e na utilidade da religião para suas atividades pessoais e corporativas), e se Ele, sem Seu amor e misericórdia (pois todos nós temos nossas deficiências) quiser nos recompensar por nossa vida ocupada, útil e correta com algum tipo de férias eternas, tradicionalmente chamadas de “imortalidade”, isso cabe estritamente à Seu próprio interesse e graça. Mas a imortalidade é um apêndice (embora eterno) dessa vida, na qual estão todos os interesses reais e os verdadeiros valores que valem a pena ser encontrados. A “agência funerária” é de fato o próprio símbolo da religião secularista, porque ela expressa tanto uma tranquila aceitação da morte como algo natural (uma casa entre outras casas sem nada que a distinga particularmente) e a negação da presença da morte na vida.
O secularismo é uma religião porque ele é uma fé, com sua própria escatologia e sua própria ética. E ele “funciona” e “ajuda”. E, falando francamente, se “ajudar” é um critério, devemos admitir que o secularismo centrado na vida ajuda de fato mais do que a religião. Para competir com ele, a religião teve que se apresentar como um “ajustamento à vida”, um “enriquecimento”, um “aconselhamento”, ela teve que se anunciar em cartazes no Metrô e nos ônibus como uma valiosa adição ao “banco amigo” e a todos os tipos de “negociantes amigos”: experimente isso, isso ajuda! E o sucesso religioso do secularismo é tão grande que levou alguns teólogos Cristãos a “desistir” da própria categoria de “transcendência”, ou, em termos mais simples, da própria ideia de “Deus”. Esse é o preço que foi preciso pagar para a religião ser “entendida” e “aceita” pelo homem moderno, proclamam os Gnósticos desse século.
Mas é aqui que chegamos ao âmago da questão. Pois para o Cristianismo o critério não é ajudar. O critério é a Verdade. O propósito do Cristianismo não é o de ajudar as pessoas reconciliando-as com a morte, mas consiste em revelar a Verdade a respeito da vida e da morte, para que as pessoas possam ser salvas por meio dessa Verdade. A salvação, entretanto, não apenas não é idêntica à ajuda, como, de fato, é oposta a ela. O Cristianismo se opõe à religião e ao secularismo não porque esses ofereçam “pouca ajuda”, mas precisamente porque eles “bastam”, porque eles “satisfazem” as necessidades do homem. Se o propósito do Cristianismo fosse retirar do homem o medo da morte, reconciliá-lo com a morte, não haveria necessidade de Cristianismo, até porque outras religiões o fazem melhor do que ele. E o secularismo é capaz de produzir homens que morrem alegremente, até corporativamente – e não apenas vivem – pelo triunfo da Causa, qualquer que seja ela.
O Cristianismo não consiste na reconciliação com a morte, mas com a revelação da morte, e ele revela a morte porque ele é a revelação da Vida. Somente Cristo é Vida, que a morte é aquilo que o Cristianismo proclama como sendo, vale dizer, o inimigo a ser destruído, e não um “mistério” a ser explicado. A religião e o secularismo, tentando explicar a morte, concedem a ela um status, a tornam racional e “normal”. Somente o Cristianismo proclama que ela é anormal e que, portanto, verdadeiramente horrível. Cristo chorou diante do sepulcro de Lázaro, e quando chegou sua própria hora, “ele começou a suar abundantemente”. À luz de Cristo, esse mundo, essa vida estão perdidos e além de uma mera “ajuda”, não porque exista p mudo da morte nele, mas porque ele aceitou e normalizou a morte. Aceitar o mundo de Deus como um cemitério cósmico que deve ser abolido e substituído por “outro mundo”, que se parece igualmente a um cemitério – o “repouso eterno” – e chamar a isso de religião, viver num cemitério cósmico e “dispensar” diariamente milhares de cadáveres, ao mesmo tempo em que nos excitamos com a ideia de uma “sociedade justa” e ainda ficamos alegres – essa é a queda do homem. Não é a imoralidade dos crimes do homem que o mostram como um ser decaído; é seu “ideal positivo” – religioso ou secular – e sua satisfação com esse ideal. Essa queda, é claro, só pode ser verdadeiramente revelada por Cristo, porque somente em Cristo essa a plenitude da vida revelada a nós, e assim a morte se torna “abominável”, a própria queda da vida, o inimigo. É esse mundo (e não algum outro mundo), é essa vida (e não alguma outra vida) que foram dados ao homem para que sejam um sacramento da presença divina, dados como comunhão com Deus, e é somente por intermédio desse mundo, dessa vida, somente transformando-os em comunhão com Deus que o homem se torna o que ele é. O horror da morte é, assim, não o fato de que ela seja o “fim”, não a destruição física. Por ser a separação desse mundo e dessa vida, ela constitui a separação com Deus. A morte não pode glorificar a Deus. Em outras palavras, quando Cristo revela a Vida a nós, é então que podemos ouvir a mensagem Cristã sobre a morte como inimiga de Deus. É quando a Vida chora sobre o sepulcro do amigo, quando ela contempla o horror da morte, é ali que começa a vitória sobre a morte.

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Mas antes da morte existe o morrer; o avanço da morte sobre nós, pela decadência física e a doença. Aqui, mais uma vez, a perspectiva Cristã não pode ser identificada com nada do mundo moderno, ou com qualquer coisa que caracterize uma “religião”. Para o mundo moderno e secular, a saúde é o único estado normal do homem; assim, a doença deve ser combatida, e o mundo moderno conduz esse combate muito bem. Hospitais e medicina estão entre suas maiores conquistas. Mas a saúde tem um limite, e esse limite á a morte. Chega um momento em que os “recursos da ciência” se esgotam – e isso o mundo moderno aceita tão simples e lucidamente quanto aceita a própria morte. Chega um momento em que o paciente é vencido pela morte, e ele deve ser removido da enfermaria, discretamente, apropriadamente e com toda higiene – como parte da rotina geral. Enquanto o homem está vivo tudo é feito para mantê-lo vivo e, mesmo nos casos em que não há mais esperança, isso não deve lhe ser revelado. A morte nunca deve ser parte da vida. E mesmo sabendo que as pessoas morrem em hospitais, o tome geral e o comportamento ali são de caloroso otimismo. O objeto dos cuidados da moderna e eficiente medicina é a vida, não a vida mortal.
A visão religiosa considera a doença, mais do que saúde, como sendo o estado “normal” do homem. Nesse mundo de matéria mutante e mortal o sofrimento, a doença e o luto são as condições normais de vida. Os hospitais e os cuidados médicos devem ser fornecidos, mas por motivos religiosos e não por causa de algum interesse real na saúde em si. A saúde e a cura são sempre considerados como a misericórdia de Deus, do ponto de vista religioso, e uma cura verdadeira é considerada “milagrosa”. E esse milagre é realizado por Deus, e mais uma vez não porque a saúde seja boa, mas porque ele “prova” o poder de Deus e conduz o homem de volta a Deus.
Em sua aplicação última, essas duas perspectivas são incompatíveis, e nada mostra melhor a confusão dos Cristão a esse respeito do que o fato de que hoje os Cristãos aceitam ambas como sendo igualmente válidas e verdadeiras. O problema do hospital secular é resolvido nele se estabelecendo uma capelania Cristã, e o problema do hospital Cristão é resolvido tornando-o tão moderno e científico – isso é, “secular” – quanto possível. De fato, porém, existe uma rendição progressiva a perspectiva religiosa perante a secular, por razões que já analisamos acima. O ministro moderno tende a se tornar não só um “assistente” do médico, como um “terapeuta” de seu próprio direito. Todos os tipos de técnicas de terapia pastoral, visitas hospitalares, cuidados com os doentes – que enchem os catálogos dos seminários teológicos – são uma boa indicação disso. Mas será essa perspectiva Cristã (e, se não for, devemos simplesmente retornar à antiga) a única “religiosa”?
A resposta é: não, ela não é a única; mas tampouco é o caso de “retornar”. Devemos descobrir a imutável, mas sempre contemporânea, visão sacramental da vida humana, e portanto de seu sofrimento e padecimentos – a visão que foi da Igreja, mesmo que os Cristãos a tenham esquecido e deixado de entender.
A Igreja considera a cura como um sacramento. Mas isso foi mal compreendido ao longo de séculos de total identificação da Igreja com a “religião” (uma incompreensão que todos os sacramentos sofreram, como sofreu a própria doutrina dos sacramentos), em que o sacramento do óleo se tornou de fato o sacramento da morte, um dos “últimos ritos” destinados a abrir uma passagem mais ou menos segura do homem para a eternidade. Existe o perigo, hoje em dia, como o crescente interesse dos Cristãos na cura, de que esse sacramento passe a ser entendido como um sacramento de saúde, um “complemento” útil para a medicina secular. E ambas as visões estão erradas, porque ambas esquecem precisamente a natureza sacramental desse ato.
Um sacramento – como já sabemos – é sempre uma passagem, uma transformação. Mas não se trata de uma “passagem” para uma “supernatureza”, mas para o Reino de Deus, o mundo por vir, para a verdadeira realidade desse mundo e de sua vida, conforme redimidos e restaurados por Cristo. Trata-se da transformação, não da “natureza” em “supernatureza”, mas do velho no novo. Portanto, um sacramento não é um “milagre”, por meio do qual Deus, por assim dizer, rompe com as “leis da natureza”, mas é a manifestação da Verdade última sobre o mundo e a vida, o homem e a natureza, Verdade essa que é Cristo.
E a cura é um sacramento porque seu propósito e finalidade é, não a saúde em si, a restauração da saúde física, mas a entrada do homem na vida do Reino, na “paz e alegria” do Espírito Santo. Em Cristo, tudo nesse mundo, incluindo a saúde e a doença, a alegria e o sofrimento, se torna uma ascensão e uma entrada nessa nova vida, na sua espera e na sua antecipação.
Nesse mundo o sofrimento e a doença não de fato “normais”, mas sua própria “normalidade” é anormal. Eles revelam a último e permanente derrota do homem e da vida, uma derrota que nenhuma vitória parcial da medicina, ainda que maravilhosa e quase milagrosa, pode superar em definitivo. Mas em Cristo o sofrimento não apenas é “removido”, como é transformado em vitória. A própria derrota se torna vitória, se torna uma via, uma entrada para o Reino, e essa é a única e verdadeira cura.
Eis aqui um homem que sofre em sua cama de dores, e a Igreja chega a ele para realizar o sacramento da cura. Para esse homem, como para todo homem por todo o mundo, o sofrimento representa uma derrota, uma via de rendição completa à treva, ao desespero e à solidão. Isso é morrer no verdadeiro sentido do t ermo. Mas esse também pode ser o momento de uma vitória definitiva para o Homem e para a Vida nele. A Igreja não vem para restaurar a saúde desse homem, simplesmente substituir a medicina onde ela esgotou todas as suas possibilidades. A Igreja vem para conduzir esse homem ao Amor, à Luz e à Vida em Cristo. Ela não vem para meramente “confortá-lo” em seus sofrimentos, não vem para “ajudá-lo”, mas para fazer dele um mártir, uma testemunha de Cristo em seus próprios sofrimentos. Um mártir é alguém que contempla “os céus abertos, e o Filho do Homem colocado à direita de Deus[1]”. Um mártir é alguém para quem Deus não é outra, e última, chance de deter a dor insuportável; Deus é sua própria vida, e assim tudo em sua vida conduz a Deus e ascende para a plenitude do Amor.
Nesse mundo é preciso que haja tribulação. Ainda que reduzido ao mínimo pelo próprio homem, ou mitigado pela promessa religiosa de uma recompensa no “outro mundo”, o sofrimento permanece, e segue sendo terrivelmente “normal”. Mas Cristo disse, “tenham coragem, pois Eu venci o mundo[2]”. Através de Seu próprio sofrimento, não apenas todo sofrimento adquiriu significado, como ainda nos foi dado o poder de torná-lo em si um signo, um sacramento, uma proclamação, o “advento” dessa vitória; a derrota do homem, seu falecer se torna um caminho para a Vida.

3

O começo dessa vitória está na morte de Cristo. Esse é o eterno Evangelho – a Boa Nova – e ele continua sendo “loucura”, não só para esse mundo, como para a religião, na medida em que é a religião desse mundo (“…a fim de que não se torne inútil a Cruz de Cristo…[3]”). a liturgia da morte Cristã não começa quando o homem chega ao inescapável fim e seu cadáver jaz na igreja para os últimos ritos enquanto o rodeamos, como tristes e resignadas testemunhas da remoção digna de um homem desse mundo dos vivos. Ela começa a cada Domingo na medida em que a Igreja, ascendendo aos céus, “afasta todos os cuidados mundanos”; ela começa a cada festa da Igreja; ela começa, em especial, na alegria da Páscoa. Toda a vida da Igreja é de certo modo o sacramento de nossa morte, porque todas essas coisas consistem na proclamação da morte do Senhor, na confissão de Sua ressurreição. Mas, ainda assim, o Cristianismo não é uma religião centrada na morte; ele não é uma “culto de mistério” no qual uma doutrina “objetiva” de salvação da morte é oferecida em belas cerimônias, que requerem que se acredite nelas para usufruir de seus “benefícios”.
Ser Cristão, acredita em Cristo, significa, como sempre significou, o seguinte: saber, mediante uma fé transracional e absolutamente certa, que Cristo é a Vida de toda vida, que Ele é a própria Vida e, portanto, que Ele é a minha vida. “Nele estava a vida; e a vida era a luz para os homens”. Todas as doutrinas Cristãs – as da encarnação, da redenção, da expiação – constituem explicações, consequências, mas não a “causa” dessa fé. Somente quando acreditamos em Cristo essas afirmações se tornam “válidas” e “consistentes”. Mas a fé em si implica a aceitação, não disso ou dessa “proposição” a respeito de Cristo, mas no próprio Cristo com a Vida e a luz da vida. “Porque a Vida se manifestou, nós a vimos, dela damos testemunho, e lhes anunciamos a Vida Eterna. Ela estava voltada para o Pai e se manifestou a nós[4]”. Nesse sentido a fé Cristã é radicalmente diferente da “crença religiosa”. Seu ponto de partida não está numa “crença”, mas no amor. Em si e por si toda crença é parcial, fragmentária, frágil. “Porque conhecemos em parte, e profetizamos em parte (…) Onde quer que existam profecias, elas poderão falhar; onde existam línguas, elas poderão cessar; onde houver conhecimento, ele poderá se apagar. Somente o amor nunca falha[5]”. E se amar alguém implica que eu coloco nessa pessoa a minha vida, ou antes, que ela se torna o “conteúdo” da minha vida, amar a Cristo significa conhecê-Lo e possuí-Lo como a Vida de minha vida.
Somente essa posse de Cristo como Vida, a “paz e a alegria” da comunhão com Ele, a certeza de Sua presença, dá sentido à proclamação da morte de Cristo e à confissão de Sua ressurreição. Nesse mundo a ressurreição de Cristo jamais pode ser um “fato objetivo”. O Senhor ressuscitado apareceu a Maria, e “ela o viu a seu lado mas não soube que era Jesus”. Ele estava na praia junto ao mar de Tiberíades, “mas os discípulos não sabiam que era Jesus”. E no caminho para Emaús os olhos dos discípulos “estavam como que cegados, e eles não o conheceram”. A pregação da ressurreição permanece sendo uma loucura para esse mundo, e não é de admirar que mesmo os próprios Cristãos a “expliquem” reduzindo-a virtualmente às doutrinas pré-Cristãs sobre a imortalidade e a subsistência. E, de fato, se a doutrina da ressurreição não passa de uma “doutrina”, se se deve acreditar nela com um acontecimento do “futuro”, como um mistério de “outro mundo”, ela não é substancialmente diferente das outras doutrinas concernentes ao “outro mundo”, e pode facilmente ser confundida com elas. Seja a imortalidade da alma ou a ressurreição do corpo – nada sabemos a respeito, e toda discussão permanece no campo da mera especulação. A morte continua sendo a mesma misteriosa passagem para um futuro misterioso. A grande alegria que os discípulos sentiram quando viram o Senhor ressuscitado, esse “coração queimando” que eles experimentaram no caminho para Emaús não foi por causa de que mistérios de um “outro mundo” tenham sido revelados a eles, mas porque eles viram o Senhor. E Ele os enviou a pregar e a proclamar, não a ressurreição dos mortos – não uma doutrina da morte – mas o arrependimento e a remissão dos pecados, a nova vida, o Reino. Eles anunciaram aquilo que eles conheciam, que em Cristo a nova vida já havia começado, que Ele é a Vida eterna, a Plenitude, a Ressurreição e a Alegria do mundo.
A Igreja é a entrada para a vida ressuscitada de Cristo; ela é a comunhão com a vida eterna, “a paz e a alegria do Espírito Santo”. E é a expectativa do “dia sem ocaso” do Reino – não de algum “outro mundo”, mas a plenitude de todas as coisas e de toda a vida em Cristo. Nele a própria morte mostrou-se um ato de vida, porque Ele a preencheu com Sua Pessoa, com Seu amor e luz. Nele, “tudo pertence a vós (…) o mundo, a vida, a morte, as coisas presentes e aquelas por vir, tudo pertence a vós; e sois de Cristo; e Cristo é de Deus[6]”. E, se eu posso tornar minha essa vida nova, minhas serão a sede e a fome do Reino, minha a espera de Cristo, minha a certeza de que Cristo é Vida, de modo que minha própria morte seja um ato de comunhão com a Vida. Pois nem a vida nem a morte podem nos separar do amor de Cristo. Eu não sei quando, nem como, a plenitude vai chegar. Não sei quando as coisas serão consumadas em Cristo, nada sei a respeito dos “quando” e dos “como”. Mas eu sei que em Cristo essa grande Passagem, essa Páscoa do mundo já começou, que a luz do “mundo por vir” chegou a nós com a alegria e a paz do Espírito Santo, pois Cristo ressuscitou e a Vida reina.
Finalmente, eu sei que é essa fé e essa certeza que enchem de alegre significado as palavras de São Paulo que lemos a cada vez que celebramos a “passagem” de um irmão, seu adormecer em Cristo:

“De fato, a uma ordem, à voz do arcanjo e ao som da trombeta divina, o próprio Senhor descerá do céu. Então os mortos em Cristo ressuscitarão primeiro; depois nós, os vivos, que estivermos ainda na terra, seremos arrebatados junto com eles para as nuvens, ao encontro do Senhor nos ares. E então estaremos para sempre com o Senhor[7]”.

NOTAS:

[1] Atos 7:56.
[2] João 16:33.
[3] I Coríntios 1:17.
[4] I João 1:2.
[5] I Coríntios 13.
[6] I Coríntios 3:21-23.
[7] I Tessalonicenses 4:16-17.

FONTE: BLOG CAMINHO DE ORAÇÃO

Alexander Schmemann – Pela Vida do Mundo – Capítulo V

CAPÍTULO V
O MISTÉRIO DO AMOR

Existe um grande mistério: falo daquele entre Cristo e a Igreja.
(Efésios 5: 32)

1

Na Igreja Ortodoxa matrimônio e um sacramento. Podemos nos perguntar por que, de todos os “estados” da vida humana, dentre a variedade das vocações do homem, somente esse “estado” foi separado e entendido como um sacramento? De fato, se se tratar simplesmente de uma sanção divina do casamento, a concessão de um auxílio espiritual aos que se casam, uma bênção para a procriação – nada disso o torna radicalmente diferente de qualquer outro ato para o qual necessitamos de orientação, sanção ou bênção. Pois um “sacramento”, com vimos, implica necessariamente a ideia de uma transformação, refere-se ao acontecimento definitivo da morte e ressurreição de Cristo, e consiste sempre num sacramento do Reino. De certa forma, é claro, toda a vida da Igreja pode ser considerada sacramental, por ser sempre uma manifestação, no tempo, do “novo tempo”. Mas de um modo mais preciso a Igreja chama de sacramentos aqueles atos decisivos de sua vida, nos quais essa graça transformadora é confirmada como tendo sido concedida, nos quais a Igreja, através de um ato litúrgico, se identifica e se torna a própria forma desse Dom. Mas de que forma o casamento se relaciona com o Reino que um dia virá? Como ele se relaciona com a cruz, a morte e a ressurreição de Cristo? Em outras palavras, o quê faz dele um sacramento?
Mesmo o simples levantar essas questões é impossível dentro de uma perspectiva “moderna” do casamento, o que inclui, frequentemente, a perspectiva “Cristã”. Nos inúmeros “manuais de felicidade conjugal”, na tendência alarmante em fazer do ministro um especialista em sexologia clínica, nas definições patéticas da família Cristã que aprova o isso moderado do sexo (que pode ser uma “experiência enriquecedora”) – em tudo isso, é claro, não há espaço para o sacramento. Hoje em dia sequer nos lembramos de que o casamento é, como tudo o mais “nesse mundo”, um casamento distorcido e decaído, e de que ele não precisa ser abençoado e “solenizado” – depois de ensaiado, e com a ajuda do fotógrafo – mas sim restaurado. Essa restauração, ademais, está em Cristo, o que implica estar em Sua vida, morte, ressurreição e ascensão aos céus, na inauguração pentecostal do “novo Éon”, e na Igreja, como o sacramento de tudo isso. Desnecessário dizer que essa restauração transcende infinitamente a ideia da “família Cristã”, e que ela dá ao casamento sua dimensão cósmica e universal.
Aqui está o ponto essencial. Na medida em que vemos o casamento como se referindo apenas àqueles que estão se casando, como algo que acontece com eles e não com toda a Igreja – e daí com o próprio mundo – jamais seremos capazes de entender o verdadeiro sentido sacramental do casamento: o grande mistério ao qual São Paulo se refere quando diz estar se referindo a Cristo e à Igreja. Devemos entender que o verdadeiro tema, “conteúdo” e objeto desse sacramento, não é a “família”, mas o amor. A família enquanto tal, a família em si, pode mesmo ser uma distorção demoníaca do amor – e nos Evangelho encontramos palavras ásperas a respeito: “Os inimigos do homem serão seus próprios familiares[1]”. Nesse sentido o sacramento do matrimônio é mais amplo do que a família. Trata-se do sacramento do amor divino, como o abarcante mistério da própria existência, e é por esse motivo que ele concerne a toda a Igreja e – através da Igreja – a todo o mundo.

2

Talvez a visão Ortodoxa desse sacramento possa ser melhor entendida se começarmos não com o casamento enquanto tal, não por uma abstrata “teologia do amor”, mas por aquela que sempre foi vista como o próprio coração da vida da Igreja e como a mais pura expressão do amor humano e de resposta a Deus – Maria, a Mãe de Jesus. É significativo que no Ocidente Maria seja basicamente a Virgem, um ser quase que totalmente diferente de nós em sua pureza absoluta e em sua celestial liberdade em relação a toda poluição carnal, e que no Oriente ela seja aclamada e glorificada como Theotokos, a Mãe de Deus, e que virtualmente todos os ícones a representem com o Menino em suas mãos. Em outras palavras, existem duas ênfases mariológicas, que, embora não se excluam mutuamente, conduzem a visões diferentes do lugar de Maria na Igreja. E a diferença entre elas deve ser mantida em perspectiva se quisermos entender a experiência de veneração a Maria que sempre existiu na Igreja Ortodoxa. Esperamos poder mostrar que não se trata tanto de um específico “culto a Maria”, como luz, como alegria, próprio a toda vida da Igreja. Nela, como diz o hino Ortodoxo, “toda a criação se rejubila”.
Mas a que se refere esse júbilo? Por que, em suas próprias palavras, “todas as gerações me chamarão abençoada”? Porque em seu amor e obediência, em sua fé e humildade, ela aceitou se tornar para toda eternidade aquilo que toda a criação deveria ser, e para o que ela foi criada: o templo do Espírito Santo, a humanidade de Deus. Ela aceitou entregar seu corpo e sangue – vale dizer, toda sua vida – ao corpo e sangue do Filho de Deus, para ser mãe no mais completo e profundo sentido da palavra, dando sua vida para o Outro e realizando sua vida Nele. Ela aceitou a verdadeira natureza de cada criatura e de toda a criação: abrigar o significado e, consequentemente, a plenitude de sua vida em Deus.
Ao aceitar essa natureza ela realizou a feminilidade da criação. Essa palavra pode parecer estranha para muitos. Em nossos dias a Igreja, seguindo a tendência moderna da “igualdade dos sexos”, utiliza apenas metade da revelação Cristã a respeito do homem e da mulher, aquela que afirma que Cristo não era “nem homem nem mulher[2]”. A outra metade da revelação é atribuída a uma visão antiquada do mundo. De fato, todas as nossas tentativas de encontrar o “lugar da mulher” na sociedade (ou na Igreja), ao invés de exaltá-la a diminuem, porque elas frequentemente implicam uma negação de sua vocação específica como mulher.
Pois, não é significativo que as relações entre Deus e o mundo, entre Deus e Israel, Seu povo escolhido, e, finalmente, entre Deus e o cosmo restaurado na Igreja, sejam expressas na Bíblia em termos de amor e união conjugal? Existe aqui uma dupla analogia. De um lado, entendemos o amor de Deus pelo mundo e o amor de Cristo pela Igreja, porque temos a experiencia do amor conjugal, mas, por outro lado, o amor conjugal tem suas raízes, sua realização profunda e real no grande mistério de Cristo e Sua Igreja: “Pois o que eu digo se refere a Cristo e à Igreja”. A Igreja é a noiva de Cristo ( “Eu os entreguei a um único esposo, a Cristo, a quem devo apresentar vocês como virgem pura”). Isso significa que o mundo – que encontra sua restauração e sua plenitude na Igreja – é a noiva de Cristo e que esse relacionamento fundamental foi rompido e distorcido pelo pecado. E é em Maria – a Mulher, a Virgem, a Mãe – e em sua resposta a Deus, que a Igreja tem seu início vivo e pessoal.
Essa resposta consiste na total obediência no amor; não na obediência e no amor, mas na completude de um como uma totalidade do outro. A obediência, em si mesma, não é uma “virtude”; ela é uma submissão cega, e não existe luz na cegueira. Somente o amor a Deus, o objeto absoluto de todo amor, liberta a obediência de sua cegueira e a transforma na alegre aceitação do Único que é digno de ser aceito. Mas o amor sem a obediência a Deus é “luxúria da carne e dos olhos, e arrogância da vida[3]”, o amor proclamado por Don Juan, que acabou por destruí-lo. Somente a obediência a Deus, o único Senhor da Criação, confere ao amor sua verdadeira direção, e o transforma em amor pleno.
A verdadeira obediência é, portanto, o verdadeiro amor a Deus, a verdadeira resposta da Criação ao seu Criador. A humanidade só é plenamente a humanidade quando essa é sua resposta a Deus, quando ela se torna n movimento de uma total entrega e obediência a Ele. Mas o mundo “natural”, quem possui esse amor obediente, esse amor como resposta, é a mulher. O homem propõe, a mulher aceita. Essa aceitação não consiste em passividade, cega submissão, porque ela e amor, e o amor é sempre ativo. Ela dá vida à proposição do homem, enche-a de vida até que ela se torne pleno amor e plena vida, até que ela seja plenamente aceitação e resposta. É por isso que toda a criação, toda a Igreja – e não apenas as mulheres – encontram a expressão de sua resposta a Deus em Maria, a Mulher, e se regozijam com ela. Ela simboliza a todos nós, porque é somente quando aceitamos, somente quando respondemos com amor e obediência – somente quando aceitamos a feminilidade essencial da criação – nos tornamos em verdade homens e mulheres; somente então podemos transcender nossas limitações como “machos” e “fêmeas”. Pois o homem pode ser verdadeiramente homem – vale dizer, o rei da criação, o sacerdote e ministro da criatividade e da iniciativa de Deus – apenas quando ele se submete – com obediência e amor – à sua natureza como noiva de Deus, em resposta e aceitação. E a mulher deixa de ser apenas uma “fêmea” quando, aceitando total e incondicionalmente a vida do Outro como sua própria vida, entregando-se totalmente ao Outro, se torna a própria expressão, o próprio fruto, a verdadeira alegria, beleza e dom de nossa resposta a Deus, aquela que, nas palavras do Cântico, o rei conduzirá à sua câmara, dizendo: “Tu és bela, minha amada, e não existe defeito tem ti[4]”.
A tradição chama Maria de “nova Eva”. Ela realiza aquilo que Eva falhou em realizar. Eva falhou em ser mulher. Ela tomou a iniciativa. Ela “propôs” e se tornou “fêmea” – o instrumento da procriação, “governada” pelo homem. Ela se tornou, e também ao homem de quem ela era “eva”, escrava de sua “feminilidade”, e transformou toda a vida numa tenebrosa guerra entre sexos, na qual a “possessão” é de fato o desejo violento e desesperado de matar a vergonhosa concupiscência que nuca morre. Ao contrário, Maria não “tomou a iniciativa”. Com amor e obediência ela esperou pela iniciativa do Outro. E quando ela veio, ela a aceitou, não cegamente – pois ela perguntou: “Como será isso possível?” – mas com total lucidez, simplicidade e alegria amorosa. A luz de uma eterna primavera chegou para nós quando, no dia da anunciação, ouvimos o decisivo “Eis aqui a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a Sua vontade[5]”. Aqui, em verdade, toda a criação, toda a humanidade, e cada um de nós, reconhece as palavras que expressam nossa natureza e existência definitivas, nossa aceitação como noiva de Deus, nossas núpcias com o Único que nos ama por toda eternidade.
Maria é a Virgem. Mas essa virgindade não constitui uma negação, uma mera ausência; ao contrário, trata-se da plenitude e da completude do próprio amor. É a totalidade de sua auto-entrega a Deus, e assim consiste na própria expressão, na verdadeira qualidade de seu amor. Pois o amor é uma sede e uma fome de completude, de totalidade, de plenitude e realização – de virgindade, no significado derradeiro do termo. No final, a Igreja será apresentada a Cristo como uma “virgem casta[6]”. Pois a virgindade é o objetivo de todo amor genuíno – não como ausência de “sexo”, mas como sua plena realização no amor; e o sexo é a paradoxal e trágica afirmação e negação, “nesse mundo”, dessa realização. A Igreja Ortodoxa, ao celebrar as festas aparentemente “não escriturárias” da natividade de Maria e de sua apresentação no templo, revela, de fato, uma verdadeira fidelidade à Bíblia, porque o significado dessas festas reside precisamente no reconhecimento da Virgem Maria como objetivo e realização de toda a história da salvação, dessa história de amor e obediência, de resposta e expectativa. Ela é a verdadeira filha do Antigo Testamento, sua última e mais bela flor. A Igreja Ortodoxa rejeita o dogma da Imaculada Concepção precisamente porque ela faz de Maria um “corte” milagroso nesse lento e paciente crescimento de amor e expectativa, dessa “ânsia pelo Deus vivo” que enche todo o Velho Testamento. Ela é a oferenda desse mundo a Deus, como é tão belamente dito no hino da natividade:

Todas as criaturas trazem seus agradecimentos a Ti,
Os anjos oferecem o sol,
Os céus, suas estrelas,
Os sábios, seus presentes,
Os pastores, seu maravilhamento,
E nós – Tua Virgem Mãe…

Mas somente Deus realiza e coroa essa obediência, essa aceitação, esse amor. “O Espírito Santo virá sobre ti, e o poder do Altíssimo cobrir-te-á com sua sombra (…) Porque a Deus nada é impossível[7]”. Somente Ele revela como Virgem aquela que levou a Ele a totalidade do amor humano.
Maria é a Mãe. A maternidade é a realização da feminilidade, porque é a realização do amor como obediência e resposta. É ao se entregar que o amor dá a vida, se torna fonte de vida. Não se ama para ter filhos. O amor não necessita justificativa; não é por dar a vida que o amor é bom; mas é por ser bom que ele dá a vida. O alegre mistério da maternidade de Maria não se opõe, assim, à sua virgindade. É o mesmo mistério. Ela não é mãe “apesar” de sua virgindade. Ela revela a plenitude da maternidade porque sua virgindade é a plenitude do amor.
Ela é a Mãe de Cristo. Ela é a plenitude do amor por ter aceitado a vinda de Deus para nós – dando vida a Ele, que é a Vida do mundo. E toda a criação se rejubila nela, porque reconhece que é por intermédio dela que o fim e a realização de toda vida, de todo amor, consiste em aceitar a Cristo, em dar vida a Ele em nós mesmos. E não se deve temer que essa alegria em relação a Maria retire nada de Cristo, ou que diminua, de alguma forma a glória que é devida a Ele e apenas a Ele. Porque aquilo que encontramos nela e que constitui a alegria da Igreja é precisamente a realização de nossa adoração a Cristo, nossa aceitação e amor por Ele. De fato, não existe aqui nenhum “culto a Maria”, embora o “culto” da Igreja se torne um movimento de alegria e agradecimento, de aceitação e de obediência – as bodas do Espírito Santo, que faz disso tudo a única felicidade completa sobre a terra.

3

Podemos agora voltar ao tema do sacramento do matrimônio. Agora podemos entender que seu verdadeiro significado não é o de uma mera “sanção” religiosa ao casamento e à vida em família, reforçando com uma graça sobrenatural as virtudes naturais da família. Seu significado está em que, ao elevar o casamento “natural” ao “grande mistério de Cristo e da Igreja”, o sacramento do matrimônio confere ao casamento um novo sentido; ele de fato o transforma, não apenas num casamento enquanto tal, mas na totalidade do amor humano.
É digno de menção que a Igreja primitiva aparentemente não conhecia um ofício em separado para o casamento. A “realização” do casamento entre dois Cristãos consistia numa partilha conjunta da Eucaristia. Com todos os aspectos da vida se reuniam na Eucaristia, também o matrimônio recebia seu selo ao ser incluído nesse ato central da comunidade. E isso implica que, uma vez que o casamento possuía também dimensões sociais e legais, essas eram simplesmente aceitas pela Igreja. Mas, como toda vida “natural” do homem, o casamento tinha que ser feito dentro da Igreja, ou seja, julgado, redimido e transformado no sacramento do Reino. Somente mais tarde a Igreja recebeu também a autoridade civil para realizar o rito do casamento. Isso representou, juntamente com o reconhecimento da Igreja como “celebrante” do matrimônio, um primeiro passo para a sua progressiva “dessacralização”. Um sinal óbvio disso foi o divórcio entre o matrimônio e a Eucaristia.
Isso explica por que até hoje o rito Ortodoxo do matrimônio consiste em dois ofícios distintos: o noivado e o coroamento. O noivado é realizado, não dentro da Igreja, mas no vestíbulo. Essa é a forma Cristão do casamento “natural”. É a bênção das alianças pelo sacerdote e sua troca pelos nubentes. Mas desde o início esse casamento natural recebe sua verdadeira perspectiva e direção: “Senhor nosso Deus”, diz o celebrante, “que esposastes a Igreja como uma Virgem pura entre os Gentios, abençoa esse Noivado, une e conserva esses Teus servos em paz e na unidade da mente”.
Pois para o Cristão, natural não significa algo autossuficiente – uma “pequena e feliz família” – ou insuficiente, que necessita, por isso, ser fortalecido e completado pela dição de um “sobrenatural”. O homem natural tem sede e anseia pela plenitude e a redenção. Essa sede e essa ânsia constituem o vestíbulo do Reino, seu início e seu exílio.
Então, tendo abençoado o casamento natural, o sacerdote conduz o casal em procissão solene para dentro da Igreja. Essa é a verdadeira forma do sacramento, pois ele não apenas simboliza, como de fato constitui a entrada do casamento na Igreja, que consiste na entrada do mundo no “mundo por vir”, a procissão do povo de Deus – em Cristo – em direção ao Reino. O rito da coroação não passa de uma expressão tardia – embora muito bonita e cheio de sentido –da realidade dessa entrada.
“Senhor e Deus, coroa-os de glória e honra!”, diz o sacerdote depois de colocar as coroas sobre as cabeças dos nubentes. Essa é, primeiramente, a glória e a honra do ser humano como rei da criação: “Sede frutíferos, multiplicai-vos e enchei a terra, submetei-a e dominai-a[8]”. De fato, cada família é um reino, uma pequena igreja, e assim também é um sacramento no caminho para o Reino. Em algum lugar, ainda que num minúsculo cômodo, todo homem, em algum momento de sua vida, possui seu pequeno reinado. Pode ser um inferno, um lugar de traição, como pode não ser. Por trás de cada janela há um pequeno mundo existindo. Isso é muito evidente quando viajamos de trem pela noite, passando pelas inumeráveis janelinhas acesas: por trás de cada uma a plenitude da vida tem uma oportunidade de se realizar, uma promessa, uma visão. É isso que a coroa conjugal expressa: que se trata do começo de um pequeno reino que ode ser em alguma medida semelhante ao verdadeiro Reino. Essa chance pode se perder, às vezes numa única noite; mas nesse momento, as possibilidades ainda estão abertas. Mas, mesmo quando elas se perdem, uma e outra vez e inúmeras vezes, enquanto as duas pessoas permanecerem juntas elas seguirão sendo rei e rainha um para o outro. E, depois de quarenta amargos anos, Adão ainda poderá se voltar e ver que Eva está ali a seu lado, numa unidade mútua que, por pouco que seja, proclama o amor do Reino de Deus. Nos filmes e revistas, o “ícone” do casamento sempre mostra pessoas jovens. Mas houve uma vez, sob a luz e o calor de uma tarde de outono, que esse escritor viu, no banco de uma praça, num pobre subúrbio de Paris, um casal idoso e pobre. Eles estavam sentados de mãos dadas, em silêncio, desfrutando da luz mortiça, do último calor da estação. Em silêncio: todas as palavras já haviam sido ditas, toda paixão exaurida, todas as tempestades acalmadas. Toda sua vida estava para trás – embora tudo estivesse no presente, nesse silêncio, nessa luz, nesse calor, nessa silenciosa unidade das mãos. Presentes – e prontos para a eternidade, maduros para a felicidade. Essa é a visão do casamento que ficou em mim, a visão de sua beleza celestial.
Em segundo lugar, a honra e a glória são também aquelas da coroa do martírio. Pois o caminho para o Reino é o martírio – no sentido de ser o testemunho de Cristo. E isso implica crucificação e sofrimento. Um casamento que não crucifica constantemente sua própria autossuficiência e egoísmo, e que não “morre para si” para ir além, não é um casamento Cristão. O verdadeiro pecado do casamento de hoje não é o adultério, ou a falta de “ajustamento”, ou a “crueldade mental”. Trata-se da idolatria da família em si e por si, na recusa em entender o casamento como algo que está voltado para o Reino de Deus. Isso está expresso no sentimento de que a pessoa deve “fazer qualquer coisa” por sua família, inclusive roubar. Aqui a família deixou de ser para a glória de Deus; ela cessou de ser uma entrada sacramental para Sua presença. Não é a falta de respeito para com a família, mas é a idolatria da família que destrói a família moderna com tanta facilidade, tornando o divórcio sua sombra natural; é a identificação do casamento com a felicidade e a recusa em aceitar sua cruz. De fato, num casamento Cristão, três se casam; e a lealdade conjunta de dois em relação ao terceiro, que é Deus, que mantém os dois numa unidade ativa, entre si e em relação a Deus. E é a presença de Deus que representa a morte do casamento como sendo algo meramente “natural”. É a cruz de Cristo que leva a autossuficiência da natureza ao seu fim. “Pela cruz a alegria (não a “felicidade”) penetrou todo o mundo”. Sua presença é, assim, a verdadeira alegria do casamento. É a alegre certeza de que o voto de casamento, de uma perspectiva do Reino eterno, não foi feito entre “partes mortas”, mas que ele nos une completamente até a morte.
Chegamos assim ao terceiro e final significado das coroas: elas são as coroas do Reino, dessa Realidade última da qual tudo “nesse mundo” – cuja forma é passageira – tudo se torna um sinal e uma antecipação sacramentais. “Recebei as coroas de Seu Reino”, diz o sacerdote, enquanto as remove das cabeças dos nubentes, e isso significa: tornem esse casamento uma oportunidade de crescimento no amor perfeito do qual somente Deus é o fim e a plenitude.
A taça comum dada ao casal depois da coroação costuma ser explicada hoje como sendo um símbolo da “vida em comum”, e nada mostra melhor a “dessacralização” do casamento, sua redução à “felicidade natural”. No passado tratava-se da comunhão, da participação na Eucaristia, do selo último da realização do casamento em Cristo. Cristo constituía a própria essência do viver juntos. Ele é o vinho da nova vida dos filhos de Deus, e a comunhão nessa nova vida proclama de eu maneira, ao envelhecermos nesse mundo, rejuvenescemos na vida que não conhece ocaso.
Na medida em que se completa o rito do noivado, os noivos se dão as mãos e seguem o sacerdote numa procissão ao redor da mesa. Como no batismo, essa procissão circular significa a jornada eterna que começa agora; o casamento será essa procissão de mãos dadas, uma continuação aquilo que aqui teve início, nem sempre cheia de alegria, mas sempre capaz de remeter à alegria e de e encher com ela.

4

Em parte alguma o sentido universal e cósmico do sacramento do matrimônio como sacramento de amor, se expressa tão bem com em sua similaridade litúrgica com a liturgia da ordenação, o sacramento do sacerdócio. Através dele se revela a identidade da Realidade à qual ambos os sacramentos se referem, da qual ambos são manifestação.
Séculos de “clericalismo” (e não devemos pensar em clericalismo como o monopólio das igrejas “hierárquicas” e “litúrgicas”) transformaram o sacerdote ou ministro num ser à parte, com uma vocação “sagrada”, única e especial, dentro da Igreja. Essa vocação não apenas é diferente, como ainda se opõe a todas as demais que são “profanas”. Esse era e continua sendo a fonte secreta da psicologia e do treinamento sacerdotal. Não é por acaso, assim, que os termos “leigo”, “laicidade”, se tornaram pouco a pouco sinônimos da falta de algo no homem, de seu despertencimento. Mas originalmente essas palavras se referiam ao laos – o povo de Deus – e não apenas possuíam um sentido positivo, como incluíam o “clero”. Mas hoje em dia, alguém que se diz “leigo em física” reconhece sua ignorância nessa ciência, seu despertencimento em relação ao fechado círculo dos especialistas.
Por séculos o estado clerical foi exaltado como sendo virtualmente “sobrenatural”, e existe uma leve conotação de temor místico quando alguém diz: “O povo deve respeitar os clérigos”. E se algum dia essa ciência que sempre foi relegada – a patologia pastoral – for ensinada nos seminários, sua primeira descoberta será de que algumas “vocações clericais” estão de fato enraizadas num desejo mórbido de “respeito sobrenatural”, especialmente nos casos em que o respeito “natural” é pouco. Nosso mundo secular “respeita” os clérigos do mesmo modo como respeita os cemitérios: ambos não necessários, ambos são sagrados, ambos estão fora da vida.
Mas, aquilo que tanto clericalismo quanto o secularismo – sendo o primeiro, de fato, o pai natural do segundo – nos fizeram esquecer é que ser sacerdote, de uma perspectiva profunda, é a coisa mais natural que existe no mundo. O homem foi criado para ser sacerdote no mundo, aquele que oferece o mundo a Deus num sacrifício de amor e louvor e que, através dessa eucaristia eterna, traz esse amor divino para o mundo. O sacerdócio, nesse sentido, é a própria essência da hominidade, a relação criativa do homem com a “feminilidade” do mundo criado. E Cristo é o único verdadeiro Sacerdote porque Ele é o único verdadeiro e perfeito homem. Ele é o novo Adão, a restauração daquilo que Adão fracassou em ser. Adão falhou em ser o sacerdote do mundo, e devido ao seu fracasso o mundo deixou de ser o sacramento da presença e do amor divinos, e se tornou “natureza”. E nesse mundo “natural” a religião se transformou numa transação organizada com o sobrenatural, e o sacerdote foi colocado à parte como o “negociador”, como o mediador entre o natural e o sobrenatural. E depois de tudo, já não importa muito como essa mediação é compreendida em termos de magia – como poderes sobrenaturais – ou em termos de lei – como direitos sobrenaturais.
Mas Cristo revelou a essência do sacerdócio como sendo amor e, portanto, como a essência da vida. Ele morreu como a última vítima de uma religião sacerdotal, e em Sua morte essa religião sacerdotal morreu e uma vida sacerdotal foi inaugurada. Ele foi morto por sacerdotes, pelo “clero”, mas Seu sacrifício os extinguiu e aboliu a “religião”. E Ele aboliu a religião porque ele destruiu o muto de separação entre o “natural” e o “sobrenatural”, entre o “profano” e o “sagrado”, entre “esse mundo” e o “outro mundo” – que era a única justificativa e razão de ser da religião. Ele que todas as coisas, toda natureza têm seu fim, sua realização no Reino; que todas as coisas são tornadas novas pelo amor.
Se existem sacerdotes na Igreja, se existe uma vocação sacerdotal nela, é precisamente para revelar a cada vocação sua essência sacerdotal, para transformar a vida de todos os homens em liturgia do Reino, para revelar a Igreja como o sacerdócio real de um mundo redimido. Em outros termos, não se trata de uma vocação “à parte”, mas a expressão do amor para a vocação do homem como filho de Deus e para o mundo como sacramento desse Reino. E é preciso que existam sacerdotes porque vivemos nesse mundo, e nada nele pertence ao Reino, e porque, “esse mundo” jamais se tornará o Reino. A Igreja está no mundo mas não pertence a ele, porque é apenas não pertencendo ao mundo que ela pode revelar e manifestar o “mundo por vir”, o além, que unicamente constitui a revelação de todas as coisas como velhas – embora novas e eternas no amor de Deus. Assim sendo, nenhuma vocação nesse mundo pode realizar por si mesma um sacerdócio. E assim deve haver alguém cuja vocação específica seja de não ter vocação alguma, mas de ser tudo para todos os homens, e para revelar que o fim e o sentido de todas as coisas estão em Cristo.
Ninguém pode decidir por si mesmo tornar-se sacerdote, decidir com base em suas próprias qualificações, preparação e predisposições. A vocação sempre vem do alto – do mandato e da ordenação de Deus. O sacerdócio revela a humildade, não o orgulho da Igreja, porque ele revela a completa dependência da Igreja do amor de Cristo – vale dizer, se Seu único e perfeito sacerdócio. Não é o “sacerdócio” que o padre recebe em sua ordenação, mas o dom do amor de Cristo, desse amor que torna Cristo o único Sacerdote e que preenche com esse sacerdócio único o ministério daqueles que Ele envia ao Seu povo.
É por isso que o sacramento da ordenação é, num certo sentido, idêntico ao sacramento do matrimônio. Ambos são manifestações do amor. De fato, o sacerdote é casado com a Igreja. Mas assim como o casamento humano é levado ao mistério de Cristo e a Igreja se torna o sacramento do Reino, é nesse casamento do sacerdote com a Igreja, que ele se torna um verdadeiro sacerdote, o verdadeiro ministro desse Amor que é o único capaz de transformar o mundo e de revelar a Igreja como a imaculada noiva de Cristo.
O ponto final é o seguinte: alguns de nós somos casados, outros não, alguns são chamados a ser sacerdotes e ministros, alguns não. Mas o sacramento do matrimônio e o sacerdócio concernem a todos nós, porque eles se referem à nossa vida como vocação. O significado, a essência e o objetivo de toda vocação é o mistério de Cristo e da Igreja. É através da Igreja que cada um de nós encontra que essa vocação de todas as vocações consiste em seguir a Cristo na plenitude de Seu sacerdócio: em Seu amor pelo homem e pelo mundo, em Seu amor pela realização última na abundância da vida no Reino.

NOTAS:

[1] Mateus 10:36.
[2] Não há mais diferença entre judeu e grego, entre escravo e homem livre, entre homem e mulher, pois todos vocês são um só em Jesus Cristo. (Gálatas 3: 28)
[3] I João 2:16.
[4] Cântico dos Cânticos, 4:7.
[5] Lucas 1:38.
[6] II Coríntios 11:2.
[7] Lucas 1:37,37.
[8] Gênesis 1:25.

FONTE: BLOG CAMINHO DE ORAÇÃO